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Há 9 meses que este blog não é atualizado. Estou convicto que o seu pressuposto se mantém e relembro que esse pressuposto seria a luta de classes que não perderia o foco sobre quem é amigo ou inimigo, aliado ou rival. E também não esquecia nem escondia de onde vínhamos, onde estamos e para onde queríamos ir. Nem escamoteava divergências, nunca deixando de as respeitar.
No entanto e no seguimento dos resultados das últimas eleições autonómicas e municipais do Estado Espanhol, notei alguns comportamentos e reações, ou ausências delas, algo esquisitas. E a partir daqui terei que confrontar algumas pessoas, amigas e aliadas, para certas contradições que, no meu entender, são inaceitáveis para o sucesso da tal da luta de classes.
O Podemos, coligado ou com potencial de fazer acordos com outras forças políticas de esquerda ou ditas de - esquerda - ganhou Madrid, Barcelona, Compostela e Corunha nas eleições autonómicas e municipais do Estado Espanhol.
Em Portugal tivemos o esquerda.net, portal do Bloco de Esquerda, a publicar 3 notícias relevantes: sobre a vitória de Ada Colau da Coligação Barcelona em Comú, dependente de potenciais acordos com outras forças de esquerda e/ou nacionalistas para obter uma maioria absoluta; de Martiño Noriega da coligação Compostela Aberta em Santiago e Xulio Ferreiro da Coligação Marea Atlantica da Corunha, nas mesmas condições.
Acrescente-se uma possibilidade avançada pelo El País: Manuela Carmena, da coligação Ahora Madrid pode vir a ter o apoio do PSOE para formar uma maioria em Madrid, apesar de terem sido a segunda força (atrás do PP).
Isto representa, de facto, uma hecatombe no sistema bipartidário esapanhol, como disse Pablo Iglesias.
Voltando a Portugal, tivemos várias sensibilidades de esquerda que se reivindicaram herdeiras ou entusiásticas apoiantes do Podemos, partido envolvido em todas as coligações supra-citadas. Passo a descrever as reações das principais pessoas envolvidas neste processo, através dos seus status do facebook.
Nuno Ramos de Almeida, amigo e aliado, anunciou com entusiasmo a possibilidade de listas com o Podemos ganharem Madrid e Barcelona, horas antes de se saberem os resultados definitivos. Mas ficou-se por aí.
Renato Teixeira, amigo e aliado, vai de férias com Tom Waits, mas promete voltar em Julho.
Raquel Varela, amiga e aliada, preocupa-se com a educação das crianças no programa Barca do Inferno.
Joana Amaral Dias, amiga, aliada e candidata a deputada pela coligação PTP / Agir demonstrou-se preocupada por estar outra vez sem telefone.
Gil Garcia, amigo e aliado do MAS, potencial candidato pelo partido "Juntos Podemos", não tem nada a dizer-nos desde 20 de Maio.
João Labrincha, amigo, aliado, organizador da manifestação Que Se Lixe a Troika e potencial candidato pelo partido "Juntos Podemos", diz que o podem conhecer melhor numa página chamada Dreamocracy.
Rui Tavares anunciava a sua entrevista à RTP2, Ana Drago e Daniel Oliveira apelavam à participação nas primárias do LIVRE.
Relembro que todos estes amigos e aliados tentaram (talvez alguns ainda o estejam a tentar) disputar em Portugal a herança do PODEMOS. Alguns tentaram mesmo criar um partido, mas após muitas divergências e acusações mútuas, aparentemente nenhum concretizará tal fetiche.
Com a aproximação das eleições legislativas em Portugal, não podemos deixar de fazer a velha pergunta: Será que não é mais importante aquilo que nos une do que o que nos separa? E não será o PODEMOS um objecto de inspiração ao mesmo tempo que de reflexão sempre crítica, no mais fraternal espírito da esquerda?
A primeira frase desta notícia do DN é todo um programa sobre democracia. Há candidatos “nanicos” e outros com tamanho de gente. A dignidade política, claro, parece reservada a quem, à partida, tinha já todas as condições para vencer.
Os candidatos minoritários “enchem” o ecrã. São distrações incómodas face ao que verdadeiramente interessa e é um alívio desembaraçar-nos deles para depois dedicarmos a nossa atenção ao que supostamente seria importante.
E o próprio debate (aquele entre os candidatos “a sério”) é representado como um “palco de guerra”.
Tudo o que não devia ser uma democracia plena.
Belém é um filme israelita, de Yuval Adler, que estreou em Portugal há uns dias.
É um retrato da relação entre um agente dos serviços secretos israelitas e um jovem palestiano que, chantageado, aceitou colaborar com ele. Uma relação rasgada pela desconfiança de lado a lado, mas em que um sentimento de afeto não deixa de estar presente. Consegue expor as contradições muitas vezes presentes do lado da resistência palestiniana, em que vários grupos se dilaceram, afastando-se do seu objetivo primordial e tornando as vidas das pessoas um instrumento. Mas, mais que isso, mostra-nos como a guerra afeta e destrói a vida das pessoas comuns.
Um filme essencial, para mais numa altura em que a agressão israelita é feita de forma tão violenta. A ver.
Quando a crise no grupo Espírito Santo rebentou, alguma direita apressou-se a divulgar a tese da imensa coragem de Passos Coelho em não emprestar dinheiro dos contribuintes a Ricardo Salgado. Mais, teria sido uma alteração de paradigma na forma como o poder público se relaciona com a banca privada. Uma autêntica revolução silenciosa que se arriscava a passar despercebida pelo ruído provocado pela queda do gigante da economia nacional. Era portanto necessário sussurrar aos quatro ventos a grandiosidade da obra de Passos Coelho tentando evitar o ridículo. Caído o Espírito Santo em desgraça, era urgente pôr em marcha o espírito santo de orelha liberal para disputar terreno sobre o sucedido.
Para tal, era preciso esquecer pormenores: esse «não» surge apenas quando o grupo Espírito Santo estava mais que afundado, tal empréstimo teria sido nada menos que um suicídio político nestas circunstâncias e a suposta não intervenção terá representado um escolher do lado vencedor nas guerras intestinas do grupo. Aliás, sobre os meandros desta decisão e sobre as suas consequências futuras ainda não saberemos da missa a metade.
A rutura de paradigma enfrentou imediatamente revezes. Uma infografia do Expresso lembrava entretanto os mais incautos que este governo é de continuidade no que toca à promiscuidade entre os interesses do BES e os do centrão político nacional. E, claro, quando se conheceu os tons alaranjados da nova administração do BES a tese da mudança de paradigma parecia ter sido enterrada.
Mas eis senão quando José Manuel Fernandes decide ressuscitar o aparente nado morto. Adorador de um livre mercado mais puro que aquilo que alguma vez tenha existido no país e no mundo, Fernandes vê no que sucedeu o exemplo acabado da missão da política e do bom funcionamento do sistema financeiro: faliu quem devia e os mercados funcionaram sem intervenção estatal. Contudo, a narrativa não fica por aqui. JMF, deturpando a natureza da crise internacional, compara a dívida do BES com a do país e aproveita pelo caminho para colar Salgado exclusivamente ao PS (quer pela prática de endividamento acima das suas possibilidades quer pela proximidade política). Teria caído agora em desgraça o Sócrates da finança depois do mesmo ter já acontecido ao Sócrates da política.
A ironia da arte retórica de JMF é utilizar dois casos em que desregulamentação do sector financeiro permitiu atrocidades que estamos/vamos pagar todos (a form como crise financeira internacional afetou aos países da Europa do Sul e a construção estilo castelo de cartas de um banco nacional sobre o crédito fácil e sem grande supervisão) para argumentar a superioridade do neoliberalismo e rejubilar porque o mercado funcionou. Invertam-se os termos do discurso e, de um passos, o neoliberalismo que promove a ditadura financeira não é o problema mas a solução.
A queda do Espírito Santo Salgado surge branqueada numa tese política sem sal mas temperada com um aparente zurzir nos interesses estabelecidos: a culpa seria dos monopólios familiares, da sua promiscuidade com o Estado, dos entraves à concorrência que persistem no país. O ideal do «mercado absolutamente livre» que nunca é suficientemente livre permite encenar uma oposição ao poder vigente por parte da ideologia que melhor o serve. Não deixa de ser interessante que parte da explicação se coloque num terreno que aparentemente seria desvantajoso aos defensores dos interesses capitalistas: o da ideia de um capitalismo nacional que é liberal no palavreado mas dependente do Estado nos negócios. O liberalismo aceita jogar no interior desta contradição aproveitando-a para pugnar por uma fuga para a frente ainda maior face aos tais mercados.
A outra face da mesma moeda é a pequena realidade das falcatruas e das lutas entre fações do capitalismo nacional que se mascara com o engrandecimento do político excecional que, em nome do erário público e apoiado numa ideologia bem intencionada, nega submeter-se ao homem mais poderoso do país. Não fosse tudo isto precisar de se colocar sob a capa de um Passos Coelho super-herói improvável contra os interesses dos capitalistas vilões e passaria mais facilmente...
Crato era o doutor exigência com a missão de exterminar o facilitismo. Era na prova que pretende obrigar os professores a fazer que ia demonstrar o seu excesso de zelo: os professores deveriam ser avaliados uma segunda vez pelos mesmos conteúdos porque a avaliação feita por uma instituição universitária regulada pelo Estado não era suficiente.
Afinal, em vésperas da sua realização, a «prova de avaliação de conhecimentos e capacidades» é amputada da sua componente específica (a que avaliaria os conhecimentos disciplinares necesssários para a realização do seu trabalho) e apenas resiste a componente geral, algo ridículo que só se pode descrever como estando a meio caminho entre uma espécie de PGA e um teste de QI abrutalhado para professores. É um remendo temporário, diz-se, mas é significativo. E é mais uma ocasião para perceber que o discurso da exigência é tantas vezes instrumentalizado por várias outras causas. O que interessa é mesmo realizar a prova e excluir, não o que é avaliado.
A culpa de todos os males da educação era do eduquês vazio de conteúdos disciplinares sérios, não era dr Crato?
O professor de Filosofia Paulo Tunhas escreve um artigo a defender os bombardeamentos e a invasão da Palestina pelo exército israelita na mais recente plataforma panfletária online da direita portuguesa. É sempre interessante confrontar-nos com as estratégias argumentativas e as falácias de um professor de Filosofia (como também já fui mestre desse ofício, sintam-se à vontade para fazer o mesmo comigo). Claro que este artigo não é um tratado de Filosofia. Mas situa o debate numa forma a-histórica e sem contexto social onde alguns pensam que a Filosofia se deve enclausurar para estar mais confortável. Apesar de não estarmos à vontade na planura deste tipo de argumentação, acamparemos por aí. O escopo deste texto é, portanto, limitado, e segue de perto o tipo de argumentos apresentados.
O artigo começa com a acusação de má-fé de quem se oponha às suas teses (será que essa tal má-fé não explicada é a modalidade central de oposição às teses israelitas?) como forma de introduzir um pseudo-pedido de desculpa pela «elaboração do óbvio» que se encena no texto. Começa portanto com um estratagema que não é brilhante (porque é demasiado óbvio na sua artimanha) mas que é significativo do objetivo: todo o bom senso se deveria render ao óbvio israelita, fora dele apenas a má-fé de uns ou a ingenuidade de outros. Aquele que foi um dos pensadores da evidência, apresenta-se agora como profeta do óbvio.
Sublinhe-se que este óbvio segue fielmente a pauta que a embaixadora de Israel em Lisboa, Tzipora Rimon, apresenta num artigo publicado no jornal Público.O óbvio que enaltece o sistema anti-míssel israelita «capaz de identificar e interceptar os mísseis passíveis de atingir centros populacionais», que cria agora uma mitologia sobre os avisos prévios dos bombardeamentos israelitas e a tese de que o Hamas procura, pelo contrário, atingir áreas residenciais israelitas e de que as vítimas dos bombardeamentos são culpa desta organização que usa civis como escudos humanos. Em algumas partes, de tão óbvios, os argumentos do filósofo e os da embaixadora confundem-se ao ponto de parecer cópia. E o que acr escenta Tunhas não aprofunda nem melhora a argumentação. O óbvio enquadra-se afinal numa máquina de propaganda por repetição.
Depois do apelo ao óbvio, Tunhas prossegue com a ilustração com a qual começa a pensar este conflito. A imagem de partida, claro, escolhe-se como início da narrativa e como arrasamento da história: usam-se os detalhes da execução dos adolescentes raptados de forma a ganhar o lado emotivo do leitor. E, seguindo-se o exemplo do assassinato de um adolescente palestiniano por colonos israelitas, tal não surge para aparentar isenção ou mostrar que há violência dos dois lados mas para tentar provar a diferença: o primeiro-ministro israelita «reagiu prontamente, apelidando o acto de “terrorismo”» enquando os palestinianos teriam regozijado sanguinariamente com a morte dos israelitas(segundo os exemplos apresentados e escolhidos a dedo, dos quais se poderia perguntar se são significativos do pensamento palestiniano sobre o tema).
Só que, poder-se-ia também afirmar, a diferença que é mais significativa no que diz respeito ao desenvolvimento do conflito é que o primeiro-ministro israelita que diz não distinguir terrorismos bombardeia e invade a Palestina sob o pretexto de um dos assassinatos mas não bombardeia nem invade os colonatos extremistas israelitas por causa do outro assassinato.
Momento seguinte: o lançamento de rockets que teria «ao mesmo tempo» subido dramaticamente (aqui o óbvio será tão óbvio que não se acompanha de provas, de números ou fontes indepedentes). Repetindo a embaixadora, Tunhas afirma «claro que o muito efectivo sistema de defesa israelita, a Cúpula de Ferro, tem impedido que o número de mortos seja elevado.» O pressuposto de que o exército israelita bombardeia humanitária acompanha-se pelo pressuposto de que o Hamas lança rockets da forma mais assassina possível. Pressuposto que se procura fazer assentar na carta do Hamas de 1987 (não há documentos ou tomadas de posição mais recentes?) e cuja citação apresentada se encontra profusamente na internet como originária de outra fonte.
Dito isto, Tunhas insurge-se contra a «fauna abundante» que defende que Israel «não deveria reagir» (reagir ao quê?), para imediatamente a seguir afirmar: «no fundo, Israel deveria deixar de existir, deveria desistir da sua própria sobrevivência.» Ou seja, esquecendo já os assassinatos que foram apresentados como motivo, Tunhas, como a embaixadora de Israel, passa magicamente da ideia do bombardeio inofensivo do Hamas ao perigo de sobrevivência de Israel. A sobrevivência de Israel é uma justificação também ela desproporcionada.
O momento óbvio seguinte é o que imputa as vítimas civis exclusivamente ao Hamas:
«Se há vítimas civis, isso deve-se, antes de tudo o mais, ao facto de as armas do Hamas e os seus centros de acção se encontrarem propositadamente localizadas no meio de populações civis, ou em mesquitas, hospitais e escolas, e de o Hamas tentar impedir que as pessoas, antecipadamente avisadas dos ataques por Israel, saiam do sítio onde estão, e onde estão também os responsáveis políticos e militares terroristas que dessas pessoas se servem como protecção.» A repetida tese do «aviso prévio» parece ser agora peça central na argumentação dos defensores do exército israelita. Curiosamente, os adeptos recém-convertidos ao «aviso prévio» de ataques não achariam tão humanitários os ataques com aviso prévio feitos pela ETA. E, para além de seletivo, o argumento é claramente falacioso como prova o artigo que responde no Público à embaixadora.
O aviso prévio é uma sms/telefonema enviada aos milhares com três minutos de antecedência. E se quisermos procurar um óbvio alternativo facilmente equacionaremos que é improvável que um exército empenhado em assassinar os dirigentes do Hamas e eliminar os misseis supostamente escondidos avise os alvos antes de os atingir o que tornaria as ações ineficazes.
Este artigo termina originalmente, com as razões que o autor encontra para a «extravagante vontade de acreditar no Hamas» (claro que só se pode partir do princípio que quem levante dúvidas sobre a atuação do Estado israelita estará do lado do Hamas, organização que se acabou de denegrir e que sobre a extravagante vontade de acreditar piamente no exército israelita nada é dito). São cinco razões:
1- «Para além de uma genérica piedade com o sofrimento humano que só pode merecer simpatia e acordo.» Sobre esta razão prévia nada se diz mas sobre ela impende a suspeita de ingenuidade.
2- «Uma certa vocação para Cavaleiro Andante que vem dos sonhos da infância e que não resiste ao apelo do quadro de um David (imaginário) a lutar, quase indefeso, contra um Golias (não menos imaginário).»
3- «Um secreto gosto romântico pela violência, sobretudo pela violência longínqua e “revolucionária”.»
4- «Uma não excessiva consideração pela democracia. Israel é um país democrático, e a democracia não excita (a não ser nos últimos delírios com a “Primavera Árabe”). Para mais, sendo localizada naquela região, Israel estraga a paisagem. Está culturalmente demasiado próxima de nós para poder geograficamente estar onde está. Ao mesmo tempo, é real. De uma certa maneira, precipita-se em Israel, porque Israel vive numa situação-limite, a questão da possibilidade e da sobrevivência da democracia.»
5- «Anti-semitismo. É certamente uma palavra que se deve usar com muito cuidado, mas também aqui, em certas bandas mentais, a coisa entra em jogo.»
Ou seja, desfilam as personagens estereotipadas na cerimónia de encerramento do artigo: dos ingénuos, aos revolucionários de má-fé aliados aos terroristas sanguinários. Já para não falar anti-semita que é lançado de forma aparentemente inocente mesmo no final do artigo, como acusação que fica a pairar sem destinatário conhecido. Destes fantasmas psicológicos de Tunhas que procuram ocupar todo o espaço de quem não louve o comportamento do Estado israelita pouco resistirá a uma análise. Espremidos os fantasmas caricaturais que só serão óbvios para quem lhes pretende dar vida, a única novidade é também um velho argumento destes debates: a imagem utópia da democracia israelita. Mas, entrando por aqui, perde-se facilmente: porque é tudo menos óbvio que um Estado religioso, que depende da ocupação e da expulsão dos habitantes de um território, que sobrevive assente na exclusão dos palestinianos e na força permanente das armas seja um Estado democrático. E parece-me óbvio que será preciso mais esforço intelectual do que a propaganda do costume para quem queira justificar o que se passa agora mesmo em Gaza.
Cheguei a Lisboa em setembro de 2010 para estudar numa universidade. Chegar a Lisboa foi chegar à universidade, à academia e ao meu trabalho mas também à vida noturna do Bairro Alto ou do Cais do Sodré, ao CCB, aos teatros na baixa e na Praça de Espanha, à Gulbenkian, aos miradouros das colinas, à noite de alfama, do intendente e da mouraria, aos jardins do Campo Grande ou do Parque Eduardo VII, aos restaurantes clandestinos, à feira da ladra, à zona ribeirinha, às praças que se ocuparam e às ruas por onde nos manifestámos nestes quatro anos. Mas para viver esta cidade na sua plenitude com autonomia são precisos transportes públicos. O direito à cidade é indissociável do direito à mobilidade enquanto possibilidade de nos movimentarmos na cidade independentemente do dinheiro que temos no bolso. Para trabalhar, como para viver, precisamos de nos transportar autónoma e livremente pela cidade.
Muito mudou a esse respeito desde 2010. Há quatro anos pagava 9,8 euros de passe, agora pago 35 euros. O número de carreiras diminuiu, passámos a ser sardinhas enlatadas no metro, especialmente na linha verde. Os tempos de espera e os preços aumentaram. E as pessoas que todos os dias têm de se movimentar começaram a ter dificuldades em pagar os transportes.
Foi com esse desmantelamento dos transportes públicos que me deparei na semana passada. Na quarta e quinta-feira assisti a duas situações nos transportes de Lisboa que me causaram náuseas e muita raiva. Ambas ocorreram no mesmo contexto: autocarro da Carris; entram três homens vestidos de azul claro; posicionam-se estrategicamente no autocarro para que dele ninguém possa sair; começam a pedir os passes e bilhetes a todos os passageiros.
No primeiro autocarro em que isto aconteceu eram 19h30 da tarde. Nele um reformado com alguma idade que ia no primeiro banco a conversar com o motorista é abordado diretamente pela entrada do primeiro fiscal. O senhor olhou-o espantado e disse que não tinha bilhete, que era uma viagem pequena, já não tinha família para o ajudar e a reforma não dava. O fiscal teve apenas uma reação: “faça favor se levantar, porque vai sair nesta próxima paragem comigo”. O homem olhou para o motorista, baixou a cabeça, agarrou no saco verde das compras e dirigiu-se para a porta de trás. Iria ser obrigado a pagar uma multa que pode ir de 180 a 270 euros. Será a reforma do homem suficiente para pagar a multa? Terá ele dinheiro para pagar a próxima viagem que o levará a casa?
Mas foi com estranheza que quando chego à paragem de autocarro às 8h30 do dia seguinte para esperar o 747, dou de caras novamente com três pessoas vestidas de azul claro e óculos escuros. Ia haver nova fiscalização. Entrámos juntos quando o autocarro chegou. Nele uma senhora com quem costumo partilhar o autocarro àquela hora colocou o passe na máquina de fiscalização mas nesta não apareceu a luz verde. Disse ao fiscal que não sabia porquê mas que não tinha dinheiro para pagar a multa na hora e perguntou se lhe podiam mandar a multa para casa, dando o BI com a morada. O fiscal teve a mesma reação: “pode levantar-se por favor, vai ter de sair comigo na próxima paragem”. A senhora pediu e insistiu para não sair, porque entrava às 9h no trabalho e se chegasse atrasada seria penalizada. O fiscal não acedeu: “já lhe disse, sai comigo na próxima paragem, regras são regras”. A senhora olhou as companheiras, baixou a cabeça e saiu na paragem seguinte.
No início deste ano já tínhamos sido surpreendidos com uma campanha pidesca em que a administração da Carris e do Metro propunha que os utentes se vigiassem uns aos outros. Os sinistros olhos a observar-nos que encontrávamos em todas as estações e carruagens desapareceram nas últimas semanas. Mas não desapareceu o seu objetivo: como as pessoas não se denunciaram umas às outras, foi preciso reforçar as equipas de vigilância e punição na hora. Equipas de fiscais implacáveis sempre que veem um delator cuja reforma não chega para pagar o bilhete ou a coima. Inabaláveis perante uma mulher que não tem dinheiro na hora e vai ser penalizada por se atrasar no trabalho.
Nos seus estudos sobre o poder disciplinar, a vigilância e o nascimento das prisões, Michel Foucault dizia que “somos menos gregos do que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas, nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmo renovamos, pois somos suas engrenagens”. As sociedades ocidentais estão confinadas a um processo de vigilância e punição permanente. Loui Wacquant, por seu turno, mostra-nos como a intensificação do neoliberalismo se construiu através da emergência de um Estado-Penal com o objetivo de vigiar, punir, controlar e reproduzir a pobreza que ele próprio cria e da qual se alimenta.
São esses dois fenómenos que representam os senhores das camisolas azuis claras que interrompem os nossos autocarros. Eles representam, como indica Foucault, um discurso claro de que nos devemos sentir vigiados em qualquer momento. Mas como também indica Wacquant, eles mostram-nos como a instauração de um regime de vigilância e regulamentação permanente, ocorre ao mesmo tempo que se intensifica a destruição do Estado-Social e se alimenta uma lógica de punição sobre os mais pobres.
É contra essa sociedade de vigias e de dispositivos de punição da pobreza que se tem que levantar uma intervenção democrática. Heitor de Sousa, economista de transportes e dirigente do Bloco de Esquerda, foi diretamente a essa discussão no passado dia 11 de julho no Público: dizia, com muita clareza, que na gestão dos transportes em Lisboa é preciso clarificar se queremos os transportes submetidos às regras da democracia ou às regras do mercado.
As pessoas estão com mais dificuldades e cada vez mais pobres com as medidas de austeridade. Mas como se isso não bastasse, estão ainda a ser punidas por não terem dinheiro para pagar os transportes de que precisam para viver.
É mesmo esta a sociedade que queremos?
O que está a acontecer com a avaliação das unidades de investigação em Portugal é absolutamente preocupante. O governo já mostrou com muita clareza que o financiamento a investigadores em doutoramento é para ser aniquilado. E Pires de Lima já mostrou também qual é a orientação: condicionar o financiamento a investigadores e projetos que tenham ligação ao mercado e que dele possam obter recursos. A somar a isto chega agora o processo de avaliação das unidades de investigações. Este processo que continua em curso é um misto de incompetência, negligência e cegueira ideológica. As unidades multiplicam as queixas sobre erros técnicos que facilmente seriam resolvidos caso as equipas de avaliação tivessem realmente especialistas das várias áreas e se estivessem preocupadas em enquadrar e discutir com os avaliados no processo de avaliação.
Mas o caso mais flagrante de cegueira é o do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL (CIES). Falo de perto porque é um centro de investigação da instituição onde tenho passado os meus últimos quatro anos de formação e onde aprendi muito do que sei sobre as transformações da sociedade portuguesa. Os avaliadores foram incompetentes ao confundirem o CIES (Centro de Investigação) com o ISCTE-IUL (Instituição de Ensino onde ele está sediado) e ao assumirem que o ISCTE-IUL faz parte da UL, fazendo com isso uma comparação entre o CIES e o ICS da UL. Mas o absurdo vai mais longe quando os avaliadores, no auge da sua arrogância, dizem ao CIES que as problemáticas das desigualdades sociais e das migrações “estão esgotadas em termos de publicações” e que o CIES tem de procurar “linhas de investigação mais inovadoras”. Como é que é possível que se faça uma avaliação baseada em preconceitos tão claros, quando as desigualdades, nas suas várias formas, se têm agravado em Portugal e na Europa e quando a emigração é um dos assuntos mais relevantes na sociedade portuguesa nos nossos dias?
O CIES lá foi penalizado por não ceder aos interesses imediatos das agendas ideológicas para a investigação. Já protestou e espero que ganhe o braço de ferro com a FCT. Mas este processo deixa marcas. O governo quer mesmo desmantelar o sistema científico nacional que tantos anos demorou a sedimentar. E fá-lo por razões ideológicas: é preciso calar quem investiga o poder; é preciso financiar quem investiga para o reforçar.
Reparei na proposta de uma coligação entre o PCP, o BE e o MPT feita pelo MAS apenas ao mesmo tempo que na entrevista de Marinho Pinto. Foi uma publicação do Bruno Góis no facebook que me chamou a atenção para o facto.
Nessa entrevista, Marinho e Pinto, melhor que ninguém, encerra o capítulo da recém-avançada proposta do MAS ao reafirmar-se defensor acérrimo do euro e ao disponibilizar-se para se entender com PS ou com PSD para soluções de governo. Mais uma vez, tal como no caso de Fernando Nobre, o ensaio de populismo pretensamente anti-sistema político redunda no momento seguinte num apoio ao que esse mesmo sistema tem de pior.
Contudo, não se trata aqui de contentar-se em criticar a falta de visão política, de viabilidade ou de correção política de uma aliança tão contranatura. O que interessa pensar é a forma como a esquerda se situa face à “crise da política” e, nomeadamente, a possibilidade de resposta a que se pode chamar populismo de esquerda.
Em primeiro lugar, esclareça-se o termo uma vez que não se procura com ele o insulto. Adoto à partida uma “definição mínima” de populismo: chamo aqui populismo ao discurso antipolítica que toma os políticos habitualmente como um grupo homogéneo a condenar sem distinções; que, tornando-os alvos preferenciais, foge às questões sociais; que é fácil porque pretende reproduzir acriticamente um certo senso comum hegemonicamente construído e dominante sem o alterar; que redunda num oportunismo político muitas vezes protagonizado por uma figura “justiceira” que pretende captação de votos e atenção mediática.
Este fenómeno enquadramo-lo, do ponto de vista tradicional da esquerda, na direita apesar de tipicamente este mesmo populismo se esforçar por fugir a esta distinção declarando-a ultrapassada. A reprodução de grande parte destes motivos pela esquerda é aquilo a que chamo populismo de esquerda.
Será justo classificar o MAS como um partido que pratica um populismo de esquerda? Apesar dos próprios certamente não se verem assim, alguns aspetos centrais da sua estratégia de comunicação (os slogans pelos quais se quer tornar conhecido) correspondem a uma tentativa de construir um discurso popular atalhando pelo populismo.
Alguns exemplos:
- “prisão para quem roubou e endividou o país” (slogan justiceiro e ambíguo que não se percebe se quer ou não criminalizar as escolhas políticas, que parece misturar quem roubou com quem endividou através das suas escolhas políticas, para além de contrariar a retórica tradicional ultra-revolucionária confiando às instituições burguesas atualmente existentes a resolução dos problemas políticos);
- “fim dos privilégios dos políticos” (slogan que sendo justo em si, e aliás a esquerda no seu conjunto deveria permanentemente quer propor medidas de fim de privilégios disparatados que existam quer tornar claro na sua prática que não entende a política como uma carreira, acaba por falhar ao, no meio da tempestade da crise, centrar as suas energias nos “políticos” como bodes expiatórios);
- “o euro afunda o país” (o mais político destes slogans peca também pela ausência do conflito social e de classe, sugere o euro como causa da crise e a saída como resolução, por si só, tanto uma como outra não são exclusivas da esquerda).
Aliás, a narrativa que se pode tirar destes cartazes que constituem a presença mais visível deste partido não o colocam claramente à esquerda. Muito menos se pode imaginar que se trata de uma esquerda revolucionária. Tal estratégia política e de comunicação é relativamente nova neste espaço político. Aliás, será uma inovação no campo político da organização internacional a que este partido pertence, a LIT-CI, que na mensagem do último congresso se insurgia contra o eleitoralismo, contra “os atalhos para as massas e a construção do partido”, recordando o legado de Moreno e a sua mensagem de “ser mais operário que nunca, mais marxista e mais internacionalista que nunca” e apelando à proletarização.
Claro que se podem sublinhar outros aspetos da política do MAS que entrem em choque com esta leitura. Não pretendo coloca em causa a filiação claramente esquerdista do partido, apenas sublinho a tensão entre os princípios que o animam, a sua estratégia e a forma de comunicação que elegeu. Creio, aliás, que será desta tensão que terá surgido a extravagante proposta de unidade com o populismo de Marinho e Pinto abrigado num partido claramente conservador como o MPT. E creio, também, que a mensagem de uma esquerda anticapitalista não combina bem com estes atalhos. Substituindo a proposta de unidade de esquerda que era a sua desde a sua criação pela proposta de unidade entre esquerda e fenómenos populistas anti-políticos, este partido fica a perder, confunde-se e confunde.
Mas o MAS interessa aqui na medida em que protagoniza uma forma possível de procurar responder à crise da política que poderá ser sintetizada nas ideias de “combater o inimigo com as suas armas” ou de “não deixar o campo do populismo para a direita”.
Pela minha parte, acredito que é uma ilusão que um partido de esquerda radical deva ocupar o campo do populismo copiando partes do seu discurso tal como é um erro acreditar que consiga concorrer no mercado do populismo uma vez que as suas regras não são apenas ditadas por quem é o melhor no exercício da demagogia mas sobretudo por quem tem acesso a meios mediáticos. A cedência ao populismo constitui uma degradação voluntária da sua mensagem que corresponde a uma admissão de derrota da mensagem tradicional da esquerda (neste caso, a ironia é que um marxismo que se acredita ortodoxo a fazê-lo). Esta degradação pode gerar um discurso duplo entre o que se diz para fora e o que se acredita verdadeiramente dentro do partido. E esta degradação não se limita a desconfiar da capacidade de apresentar a sua mensagem desconfia, em última análise, da capacidade do proletariado de absorvê-la simplificando e imbecilizando. Não é por sermos incapazes de transmitir claramente e de forma compreensível a nossa mensagem que devemos atribuir a culpa ao recetor.
O populismo é tóxico para qualquer mensagem política. E sobretudo para a da esquerda. Como já repetimos, o populismo (e os seus significantes vazios) desvia os alvos (os imigrantes, os políticos, a “Europa” etc. constituem as cortinas de fumo em que se tem envolvido este discurso) quando é mais preciso recentrar a análise no projeto autofágico que a burguesia nacional propõe para o país. Ao pretender-se antipolítico, o populismo não se institui apenas como uma crítica saudável da política dominante mas é um bulldozer que arrasta tudo por igual. Mesmo que à esquerda possa haver quem diga que “os políticos são os outros”, acabará enredado na teia da política. Os políticos somos sempre nós do ponto de vista dos outros. E a diferença não se pode reclamar repetindo este tipo de discurso, apenas a partir de outra prática…
O populismo é também tóxico por outra coisa: é volátil, navega à vista das emoções do momento que procura espicaçar ao mesmo tempo que seguir. Começando a política por ele arriscamo-nos a começar a construir dentro do pântano.
O equívoco que parece estar na base desta proposta é o de tomar o senso comum despolitizado, que é já resultado das lutas de classes, de forma linear como revolucionário. A ele responde, diga-se, um equívoco simétrico que remete para uma resposta à crise da política também ela errada: a que aceita essa expulsão como um dado inultrapassável e que faz somente política institucionalizada já não conseguindo dialogar com quem sente a crise da política. Há quem tenha desistido de quem desistiu da política e quem desista da política cedendo à mensagem implícita no discurso da desistência.
A crise da política é, não só mas também, uma forma de dispersão e de exclusão da política dos descontentes que se veem afinal encurralados num discurso político populista que muitas vezes se reterritorializa das formas mais diversas na política dominante. Este descontentamento tem potencialidades criativas ou destruidoras, como é óbvio. Há que trabalhar na contradição percebendo aquilo a que Gramsci chamava “núcleo são” do senso comum. Mas não nos podemos resignar a reproduzir o discurso nos termos em que ele é feito para nos derrotar. Isso é, para continuar a linguagem gramsciana, batalhar pela hegemonia. Claro que as dificuldades (imensas) do campo popular não se podem resolver com uma estratégia de comunicação populista. Não há atalhos populistas para o enraizamento popular.
Ontem multiplicaram-se notícias sobre a grande solução europeia para o desemprego jovem: a Aliança para a Juventude. É certo que a Europa é um continente dizimado pela austeridade e pela chantagem da dívida que fizeram regredir a economia, as funções sociais do Estado e que conduziram a um alastramento da pobreza e do desemprego. Mas para a Europa tudo estava bem com essa estratégia até que Durão Barroso quis sair com alguma dignidade da podridão em que deixou a Europa e já de saída nomeou o desemprego jovem como o grande problema europeu.
A Comissão Europeia, firmemente consciente deste problema civilizacional e depois de se munir de poderosos instrumentos técnicos, encontrou a solução para o problema: criar estágios temporários em grandes multinacionais. Um jovem candidata-se a um conjunto de estágios que vão abrir, na prodigiosa esperança de poder ficar na empresa. Não importa que as economias sejam dizimadas e que a classe média encolha a olhos vistos. Não importa que o emprego qualificado não exista. Para estes senhores, desde que se tenha um estágio, e depois outro, e depois outro, e depois ainda outro, mais cedo ou tarde, deixaremos de ser descartáveis e poderemos ter uma vida digna.
Esta “Aliança para a Juventude” é uma boa solução para a cabeça de génios europeus como o Bruno Maçães, que cá em Portugal voou das aulas do João Carlos Espada na Católica para Secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Em Portugal, ao que se sabe, o programa pretende até 2017 criar 8 mil estágios através da Nestlé. É um número curioso. Abrange mais ou menos 1 em cada 60 jovens entre os 15 e os 34 anos que só hoje em Portugal não estudam nem trabalham.
Enquanto a economia vai sendo destruída, os estágios vão substituindo as necessidades de trabalho permanente. Os estágios da Aliança para Juventude, pomposamente apresentada numa sessão pública por Passos Coelho, Paulo Portas, Mota Soares e Durão Barroso, dão para a imprensa fazer umas notícias baseadas na ilusão de aquele 1 em cada 18 jovens desempregados em Portugal que vai poder ter um estágio deste programa, vai depois ficar estável numa empresa cujo trabalho corresponda à sua formação e interesse.
Enfim, há programas assim. São criados para fazer notícias. E para fingir que a Europa ainda está de boa saúde, quando cheira a podre por todos os lados.
A velha música de Cartola não era banda sonora. A leitura fez-se no silêncio. E, contudo, os seus versos insinuavam-se obstinadamente:
«Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.»
O samba não era apenas o ritmo da distração ou da incapacidade de concentração. Mas a música também não se encaixava diretamente no que se lia. Se o pessimismo da letra de Cartola nos lembra que o mundo é um moinho, o livro do João Carlos Louçã (Call Centers, Trabalho, Domesticação e Resistências, Deriva Editores, 2014) traz-nos outra imagem: a do mundo do trabalho contemporâneo como um call center. Nele é todo o consenso dominante sobre o trabalho e os seus modos de organização que se encontram dissecados lucidamente: precariedade, produtivismo absurdo, controlo asfixiante de ritmos e espaços, normalização de procedimentos, avaliações como forma de poder discricionário, subversão por cima de elementos basilares das tradicionais relações de trabalho como o horário, o salário ou o contrato, imposição das ideologias do sucesso, da competição e do falso espírito de grupo ao mesmo tempo da atomização e do estilhaçar da consciência de classe.
Sob a forma da «modernidade regressiva», o mundo é um call center que nos vende a naturalização da nossa exploração. O call center é, assim, o símbolo da destruição de direitos e um barómetro das mudanças no trabalho nas últimas décadas. O João Carlos consegue juntar o enquadramento teórico-político com a análise empírica produzindo um documento importante para se pensar a precariedade em Portugal.
Mas talvez a canção tivesse razão em insistir. Talvez tenha insistido porque afinal o call center é igualmente um moinho no sentido de ter a força para triturar os sonhos da intermitência permanente das vidas precárias. Este livro dá voz às perceções para além dos sonhos triturados e às ilusões persistentes de quem trabalha num call center mas mostra ainda o call center como lugar de resistências improváveis, dos micro-boicotes a outras formas de «luta de classes de baixa intensidade» nas quais se combate ingloriamente contra um «patrão invisível».
Serão importantes ou viáveis? A pequenez invisível do gigantismo patronal que não tem respeito pelas vidas que esmaga tem força desproporcional face à «identidade frágil» nanizada a golpes de falsa motivação e de verdadeira desvalorização do trabalhador.
Gigante ou moinho? Fará diferença? Lutar nestas circunstâncias será apenas quixotismo?
Um novo embate entre a música e o livro impõe uma escolha. Hoje, estando como estamos à beira do abismo coletivo, para que não herdemos dos nossos amores e das nossas lutas só o cinismo, é preciso preferir o optimismo da vontade transformadora que arrisca que outro trabalho é possível à contemplação pessimista dos sonhos triturados.
E o João Carlos lembra-nos das forças que temos para além dos Quixotes:
«Rocinante e Sancho Pança sabem que são eles que permitem as investidas contra os moinhos de vento, mesmo quando é o fidalgo alucinado que mantém a atitude altiva e, no seu delírio, acumula glórias. Até um dia que resolvam deixar de o fazer.»
Ainda que o mundo seja um moinho é importante lembrar que os sonhos triturados são os de Sancho Pança e de Rocinante e que a engrenagem se alimenta desses sonhos que cria e destrói. Mesmo que não se vejam falsos gigantes mas verdadeiros moinhos, com toda a consistência da pedra, há que escolhar embater contra eles. Porque nós, nós, os pequenos, com a consciência de que só nos agigantamos quando somos todos do mesmo tamanho conseguimos cavar bem mais do que um abismo com os nossos pés.
E quem diz que os sonhos triturados não se podem semear?
As notícidas não são de hoje, mas ainda estou boquiaberta pelo dito “humor britânico”. Desta vez, com LEGOs! Não é por acaso que, cada vez que alguém de Londres e arredores abre a boca, um anjo ganha asas. Quero dizer, o “sim” pela independência escocesa ganha um voto. Excepto quando é o David Bowie, claro. Esse só despoletou dias inteiros de trocadilhos no Twitter com os títulos das canções adaptados aos estereótipos sobre os escoceses.
O Guardian, considerado pelos leitores do Torygraph como um pasquim de esquerda, tem tido parte activa na campanha. Ele é artigos sobre como imperadores do whisky temem a separação, ele é colunas de opinião sobre como as mulheres tendem a estar tramadas em países pequenos (hurrah! Preocupam-se com as gajas!), passando por pedidos de desculpas para inglês ver e, claro, títulos com o papão do financiamento e de como a Escócia nunca se conseguirá safar. Só falta um estudo sobre o movimento das placas tectónicas no caso de os votantes escolherem deixar o reino separado. Pronto, de vez em quando lá publicam qualquer coisa pelo "sim". Independentemente disso tudo, agradeço-lhes terem preservado esta pérola para a posteridade. Parte de mim ainda tem esperança de que isto seja mesmo sinal de que o “não” se sente tão seguro que até deixa terroristas panfletários do “sim” infiltrar-se para boicotar a campanha oficial.
Gostava, no entanto, que este primeiro post com a etiqueta do referendo das ilhas servisse para deixar um link útil e supra-partidário para seguir o debate, do lado do "sim". É que, apesar do paternalismo crescente da campanha do “não”, ainda há quem vá tentando discutir política ali pelas páginas da Bella Caledonia.
Como enviada especial do Linhas da Ira para as Terras Altas, prometo manter-vos a par do que se for passando nos dois meses e meio de propaganda e debate construtivo que temos pela frente. Vão mandando as vossas perguntas e ainda talvez se arranje uma sessão de Q&A em directo! Ah, esperem, em Agosto há festival de teatro. Muita tinta correu sobre como os Jogos Olímpicos de Londres terão contribuído para o sentimento de união no reino. Pode ser que os festivais de Edimburgo acabem num desvario separatista a 18 dias do referendo...
PS - Parece que o Bowie foi perdoado.