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Dizem que coimbra é fado. Uma certa melancolia de tom baixo que nos acompanha nas sinuosas subidas de uma cidade vestida de negro. O fado é um património. Um património oral e imaterial que alguém recentemente se lembrou de materializar, numa dita coisa chamada estátua.
Chama-lhe arte, mas para mim é apenas uma triste obra, que nem a arte consegue ascender. É básica, acrítica e sem qualquer sentido de estética. Mas mais do que isso, é violenta.
A dita obra ocupa o Largo de Almedina, junto ao seu arco. Foi uma prenda à cidade, de um autor que não merece sequer ser nomeado, e que prometeu que ela se tornaria um símbolo desse fado que é Coimbra. Cumpre o seu propósito, é efetivamente um símbolo. Não o de um património pelo qual nos devamos sentir orgulhosas, mas um símbolo dos 500 casos de violência de género que ocorreram em 2012.
Não! Ela é mais, ela é a representação de todos os casos de violência de 2012, de 2011, de 2010…de agora, deste preciso momento. É a materialização do património machista e violento, da masculinidade obsessiva da nossa sociedade. Devemos opor-nos vivamente a que tal representação ocupe o espaço público desta cidade, de qualquer cidade.
Não podemos tratar a “obra” como uma representação mal conseguida. Temos de a tratar pelo que ela é, uma violência. Porque ela não é apenas representativa da violência contra as mulheres, ela é também produtora dessa violência. É o resultado de uma ideia encrustada na nossa forma de pensar e olhar as mulheres, que as objectifica, promovendo um sentido de uso e de propriedade.
Enquanto mulheres, a nossa luta passa pelo direito ao nosso corpo, em toda a sua multitude. O nosso corpo é o nosso veículo, é com ele que experienciamos o mundo. Deixar que o objectifiquem é retirar-nos esse direito, e é aceitar que experienciamos o mundo pelo olhar de um outro. Um outro que nos determina a forma e a expressão.
Opormo-nos a estas representações violentas dos nossos corpos, é resgatarmos o direito a experienciar o mundo pelo que ele é, nosso, e é retirar ao outro o poder de fazer experimentalismos com ele. O corpo é nosso, e é múltiplo. Somos nós, e não o que os outros imaginam de nós. Ninguém tem o direito a determinar ou a comparar o que somos, como somos, como nos parecemos. O nosso corpo não é um objeto, não se assemelha a nenhum objeto, e muito menos, se assemelha a uma viola de um estilo estilo musical onde a mulher se encontra excluída. Porque importa relembrar o que é o fado de Coimbra, esse destino exclusivamente cantado e tocado por homens. Esse património oral e imaterial da humanidade do qual não fazemos parte, e do qual agora nos querem associar ao objeto que durante a cantiga se senta passiva no colo de um homem de traje, que lhe toca, e a afina, consoante a sua vontade.
"O meu corpo, o nosso corpo, não é um objeto. Não é uma guitarra que não posso tocar"
O corpo é meu, toco-lhe eu. E não, o corpo não faz lembrar nada mais do que um corpo.
Resgatamos o direito ao prazer. Ao auto-prazer. Abandonemos esta posição passiva perante o prazer, uma posição que não escolhemos, que escolheram por nós. Resgatemos o prazer pelo nosso prazer. Temos de deixar que digam como nos devemos sentir, deixar que nos digam que o prazer apenas existe se for partilhado, segundo os cânones do homem de traje.
“masturbação – auto-determinação” (ZULOAK)
O corpo é nosso, o prazer é nosso, a escolha é nossa. Se o partilhamos, partilhamos porque queremos, e se não queremos, somos livres de o expressar individualmente. O nosso corpo é o veículo do nosso prazer e não o veículo do prazer do outro.
Temos o direito a dizer não, eu não sou essa representação passiva. Relembrando que objetos não criam relações de intimidade, de reciprocidade e de partilha. Por isso não deixaremos a representação dos nossos corpos à vontade que não é nossas, ou à moral que não construímos.
“Não cedemos no corpo, como não cedemos no prazer.”
O meu corpo, o nosso corpo não é um objeto, nem se parece com um objeto e muito menos deve ser representado como um.
E se ainda alguém tem alguma dúvida relativamente a isto, lembrem-se. Ninguém trata um objeto, mesmo que se assemelhe com um corpo, como se fosse um corpo. Pelo contrário, irão trata-lo exatamente pelo que ele é, um objeto. Sem direitos, sem vontade própria.
É essa violência que esta “obra” carrega consigo. É a materialização da ideia da posse sobre o corpo da mulher, que o reconfigura, idealizando representações que pertencem ao imaginário fetichista do outro, e o distanciam da realidade orgânica, promovendo comportamentos abusivos.
Reafirmo, o nosso corpo não é um objeto, nem se assemelha a um objeto. Porque o objeto é propriedade alienável, mas o nosso corpo não. A única propriedade que possui é a de quem de move dentro dele. E quem se move dentro dele experiencia o mundo de formas muito mais diversas e complexas do que nos querem fazem crer.