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Há dias ganhei um convite duplo para a ante-estreia d' O Capitão Philips, uma cinebiografia com o Tom Hanks que estreou esta semana. Não sendo todos os dias que se pode ir ao cinema à pala, nem me dei ao trabalho de perceber sobre o que era o filme, na pior das hipóteses enchia a boca com entretenimento empacotado.
Típico cinema de ação de chacha que há-de dar um ou dois óscares ao elenco, a trama retrata um marinheiro mercante cujo navio cargueiro que capitaneia é assaltado por piratas somalis. Dum lado os bons, norte-americanos, sem armas, vulneráveis, e do outro os somalis, maus, violentos e assassinos. O melhor dos bons, o capitão, sacrifica-se e deixa-se raptar para garantir a segurança da restante tripulação, mas entretanto entra em campo a força militar norte-americana na história, os maus morrem todos exceto o que é preso, o melhor dos bons é salvo e os bons ficam todos bem. Filme banal portanto.
Sobre o filme não haveria muito mais a dizer, não utilizasse ele o já conhecido chavão das "aterrorizadoras" águas somalis e não fosse por isso mesmo uma oportunidade para explorar essa narrativa redutora de terrorismos marítimos da África pobre.
À imagem do resto do território africano, a Somália foi até meados do século XX sangrada pela epidemia do colonialismo europeu, no caso encabeçado pela Itália e pela Inglaterra. Em 1960, com a independência e unificação dos dois territórios divididos até aqui por aqueles dois países europeus, nasce a República Somali e com ela uma democracia parlamentar. Nove anos depois dá-se um golpe de estado, o presidente da república Somali, Abdirashid Ali Sermarke é assassinado, e instaura-se a República Democrática Somali, uma ditadura militar sob a mão de de Mohamed Siad Barre. Este regime foi até ao final da década de 70 apoiado pela união soviética, e a partir daí, após a guerra de Ogaden, numa reviravolta de alianças da Guerra Fria, apoiado pelos Estados Unidos. Com este último apoio, importantes contratos sobre a exploração de petróleo até aí nacionalizado são obtidos por empresas petrolíferas norte americanas.
Este regime durou até 1991, ano em que estalou a guerra intestina que dura até hoje. Desde então se prolonga o conflito armado entre diversas fações e clãs, entre elas o governo federal transitório, um ensaio de administração central federal, e que conta com o apoio da União Africana e das Nações Unidas através da Missão da União Africana para a Somália, e que detém o controlo de Mogadíscio.
Neste limbo político desde 91, na inexistência de um estado que regule e controle o seu espaço marítimo, o capitalismo selvagem viu um negócio lucrativo.
Começaram a chegar navios pesqueiros norte-americanos, europeus e asiáticos, praticando pesca ilegal não declarada não regulada (IUU fishing), que, com o seu volume de negócio que se estima ascender aos 450 milhões de euros, têm destruídos os recursos piscícolas da região e deixando na miséria as comunidades piscatórias.
Começaram a entrar nas águas territoriais navios que lançam ao mar milhares de barris que, veio-se a saber só com o maremoto de 2004, que fez com que os barris dessem à costa, contêm resíduos radioativos como urânio e metais pesados como cádmio e mercúrio, resíduos hospitalares e industriais. Com estes barcos vieram também infeções de vias respiratórias, hemorragias intestinais, mortes repentinas.
Esta realidade é conhecida pela ONU desde o seu início, até o próprio grupo de monitorização da Somália e Eritreia tem relatos sobre o assunto, mas a ONU faz ouvidos moucos aos seus próprios monitores.
Foi para deter este saque com os seus próprios meios, já que nenhum organismo internacional prestou qualquer auxílio, que grupos de pescadores, que lhes viam roubar o sustento e destruir a sua terra, se aliaram a grupos armados para expulsar as embarcações internacionais. E assim começaram as práticas de pirataria no Corno de África.
Claro que o grupo que raptou Richard Philips não se tratava só de um grupo de pescadores que queria afugentar o tal navio do território Somali, e claro que num país em Guerra Civil há 12 anos, a tentativa infrutífera de expulsar as embarcações internacionais se transformou numa prática lucrativa de captura de barcos, mas também não é menos verdade que na história do capitão Philips os verdadeiros piratas dos oceanos e do mundo, aqueles que saqueiam o mundo e desprezam os mais básico direitos humanos não eram os maus dos somalis.
Dizia Chomsky em Piratas e Imperadores que Santo Agostinho contava a história de um priata capturado por Alexandre Magno, que lhe perguntou "Como ousas molestar o Mar?", e que ouviu como resposta "E como ousas tu desafiar o mundo inteiro? Pois, por fazer isso com um pequeno navio, sou chamado de ladrão, mas tu, que o fazes com uma marinha enorme, és chamado de imperador." Pois.