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Discutem-se muito na esquerda e na sociedade portuguesa os momentos, as ferramentas, as formas e as estratégias da resistência e da luta social e política nesta “Era da Austeridade”. Hoje queria-vos falar de uma dessas ferramentas. Uma que me marcou particularmente e que tem marcado diversas gerações desde os anos 90 em Portugal. Falo-vos da música rap. Um brutal instrumento artístico de empoderamento, expressão e crítica de milhares de pessoas.
Não há espaço aqui para refletir sobre a origem e os percursos da música rap em Portugal e no mundo, mas vale a pena dizer que o rap não é exclusivamente importante enquanto forma particular de fazer arte. Mesmo que levemos a sério os versos de Fernando Pessoa em que “o essencial da arte é exprimir; não interessa o que se exprime”, quando olhamos para música rap, para os seus músicos e para os seus públicos, percebemos que o que se exprime não é irrelevante do essencial. A componente estética, musical e artística é completamente indissociável da componente social, cultural e política.
Discutimos também com muita intensidade as formas e os mecanismos que as sociedades podem desenvolver para contrariar a reprodução das desigualdades. Isto é, que as posições de classe dos indivíduos sejam idênticas à que os seus pais ocuparam. Falamos de escolas inclusivas e mais igualitárias, de oferta de serviços públicos, de qualificação, de criação de emprego qualificado e tantos outros. Eu queria falar-vos do meu caso para título de exemplo. É que mais do que a escola, a família ou as instituições, foi a partir do rap nos meus catorze, quinze, dezasseis anos que senti um despertar para a ação coletiva, para a urgência da organização política e para a inevitabilidade da concretização das utopias. Sei que não foi só comigo.
Se esses anos foram anos de imensa politização, senti recentemente uma imensa vontade de voltar a esses músicos, a esses temas e àqueles discursos. Recentemente voltei a ouvir rap com imensa regularidade, para tentar encontrar nessa expressão artística a força para as lutas mais importantes das nossas vidas que estamos a travar. Encontrei o que estava à espera. Continua a existir um rap lúcido, politizado, contestatário e interventivo. A austeridade que nos congela a vida encontra no rap uma força contra-hegemónica brutal. Uma força onde todos podem ser atores principais e agarrar no microfone. Uma força de divulgação massiva de informação pelas ruas e pelos bairros. Uma força de identificação coletiva.
É por isso que gostava de fazer deste texto um elogio a este rap na Era de Austeridade. As referências que trago são uma gota, no oceano de pessoas que cantam e fazem rap diariamente. A todas essas pessoas desejo que continuem a inspirar mais gente, tão precisa neste tempo de emergências:
O FMI quer que o Estado concorra no peso pesado
Até a anorexia da democracia é uma obesa lei de mercado
Portas e Passos Coelho, quem quer ser milionário?
Um concurso do FMI para o seu melhor funcionário
Sacrifico o meu hoje, para um incerto amanhã
O FMI quando vem é para foder pergunta ao Strauss-Kahn
(Chullage, Mediocridade, Rapressão [2012] )
Chullage voltou com um álbum que honra o seu percurso, a sua integridade e o seu compromisso com a música e com quem o rap representa. Um álbum amadurecido onde o FMI, o governo português, o sequestro do sistema político pelo sistema económico e financeiro, a austeridade, a dívida e, naturalmente, os problemas dos imigrante e das populações mais pobres, são objetos privilegiados. Rap duro na crítica, e com proposta de ação, de organização e de futuro.
Bilderberg governa o Mundo tudo o resto é seguidismo
G20, União Europeia extensões desse maquiavelismo
Para sempre subordinados, liberdade é ilusionismo
submissos e reprimidos damos vivas ao oligarquismo
(Valete, Oligarquismo [2013])
Valete já não é novidade no rap politizado desde pelo menos o Educação Visual. Nossos tempos, À noite ou Beleza Artificial foram temas marcantes na crítica social e política do músico em 2002, que consolidou com Serviço Público e com imensas participações, uma densidade cultural e política absolutamente determinante no rap e na música portuguesa. Em Oligarquismo, a sua mais recente música, depois de várias considerações (evidentemente discutíveis) sobre a história dos oligarquismo, interpela-nos com o que vivemos hoje: um mundo dominado por elites financeiras, económicas e políticas que se encontram em Bilderberg (onde este ano esteve António José Seguro e Paulo Portas…) e um mundo em que as instituições políticas e democráticas foram deslegitimadas por poderes não-eleitos como o G20 e as instituições financeiras da União Europeia.
Temos tudo o que é estudo…
Emprego zero,
O berço era de ouro mas foi posto no prego.
Na neurose do euro não seremos servos,
Seremos nós os heróis,
(nós) seremos nós os heróis,
(nós) nós os heróis!
Aqui não há fins-de-semana,
Apenas folgas,
Se querias ficar na cama pensa que é pior nas obras,
Pedem-te para ter esperança e ficas verde,
Pensas logo no recibo e em tudo o que a gente deve,
(Capicua, Os Heróis, Capicua [2012])
Rap sobre os poderes que nos governam, mas rap também sobre a situação precária em que a troika e o governo condenaram o país. Capicua não precisa de grandes apresentações, basta que se ouça uma música dela para se perceber a intensidade, a força e harmonia de um rap contra os medos, de um rap pela ação coletiva. No seu álbum homónimo em 2012 apresenta-nos não apenas um disco, mas um manual para a ação, um manual que nos destina uma função histórica: a missão de sermos os heróis dos combates que temos de travar.
União Europeia a colapsar,
Portugal a mergulhar nestes dias funerários,
Vou-me embora, vou, vou pra Luanda,
Já não há nada aqui pra mim, isto já não anda nem desanda
(Valete, Meu País [2012])
Valete, novamente. Para nos contar a história de mais uma pessoa que emigra. Mais uma das mais de 300 pessoas que saem todos os dias de Portugal. Mais uma pessoa que deixa toda a sua vida, a sua namorada, a sua casa, os seus projetos, o seu país. Uma música sobre o país que tem que se levantar. Uma música de tristeza.
Eu não conheço este homem
Em que me tornei hoje
Vejo as luzes da cidade a brilhar ao longe
Onde mora a felicidade, a mulher dos sonhos
(…)
Há um vagabundo sem nome
Que dorme em baixo da ponte
Há um rosto enrugado num reflexo
No outro,
Há algo de errado que este rio esconde.
(Halloween, Debaixo da ponte, Arvore Kriminal [2011]
Famílias pobres ya eu pertenço a esse povo
Mobílias podres é todo o que eu vejo desde novo
Os meus cotas bulem desde os doze sem repouso
Por isso eu decidi fazer o oposto e tar disposto
A levar uma vida que a muita gente tem dado desgostos
(…)
Quando disse ao meu pai ainda vais ver o teu puto a brilhar
(Quando disse ao meu pai ainda vais ver o teu puto a brilhar)
Ele devia estar a pensar olha o meu puto a brincar
(Regula, Berço D´Ouro, Gancho [2013])
Haloween e Regula também lançaram discos neste período. O seu percurso e estilo não são comparáveis, mas junto-os porque nos convocam para um mundo que nunca deixou de existir e um mundo que arriscamos que continue a existir. Halloween fala-nos do homem que vive debaixo da ponte, do homem que não se reconhece e que deixou longe tudo o que foi, para se entregar ao rio. É o mundo desse homem que nos arriscamos que continue a existir. Um mundo de desidenticação coletiva, de fim de ciclo, de desespero. Regula traz-nos antes o mundo que nunca deixou de existir. Um mundo que relata na primeira pessoa. Um mundo de gente pobre, que não nasceu em berços de ouro, e que muitas vezes se rendeu a caminhos arriscados para arranjar dinheiro urgente. É um mundo invisível, escondido em blocos de bairros sociais onde os pobres são encaixotados. Um mundo onde nem sempre os pais acreditam que os filhos brilhem.
Rap na Era da Austeridade.
Rap para aquecer consciências e convocar combates. Uma expressão artística que envolve milhares de pessoas, milhares de lutas, milhares de vontades. Uma expressão artística com milhares de forças. Mas para virar este mundo do avesso, precisamos não de milhares, mas de milhões. Ainda está quase tudo por fazer.
Mas enquanto continuamos o caminho, uma certeza podemos ter: o rap faz-nos andar com a cabeça mais erguida.
Publicado originalmente no Esquerda.net.