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Há um ano atrás, a esta hora, estava eu numa cela num estabelecimento prisional em Monsanto. Sem acusação, sem telefonema, com advogada impedida de falar comigo e com outros. E porquê? Porque estava no Cais do Sodré às 18h de dia 14 de Novembro. Hoje estou no Brasil à procura de um começo digno, depois de ter terminado a Licenciatura. O Governo e o Ministro Miguel Macedo continuam no poder, apesar das mil e umas ilegalidades cometidas pela PSP no dia 14 de Novembro de 2012. Uma das ilegalidades, a prova de que não houve qualquer "aviso" antes da maior carga policial da história do país, demorou quase um ano para ser condenada pela Justiça.
Eu estive na manifestação e fiquei depois de terminar o discurso da CGTP. Não participei no festival de pedras, mas vi claramente que ele só aconteceu com consentimento policial, ou superior. No momento logo antes da carga policial, saiu um projétil luminoso desde o cordão policial até o meio do largo frente ao Parlamento. Um ou dois segundos depois, um mar de polícias que desceram e numa espécie de arrastão, bateram em tudo o que viram à frente. Pais com crianças ao colo, idosos, até em bicicletas. Eu vi cães raivosos dentro de uma farda, cuja acção só mostrava o total desconhecimento da lei, da Constituição, dos direitos do povo que juram defender.
Fugindo da confusão, acabei por parar no Cais do Sodré, a mais de 1km do local da carga policial, com o objetivo de apanhar um taxi. Subitamente, uma emboscada de polícias "à civil" apanharam-me a mim e a mais 20 pessoas e algemaram-nos. Algumas pessoas não tinham estado na manifestação. Estavam a passear no Cais do Sodré. Outra pessoa tinha saído pelo Rato, porque não se quis meter na multidão e queria voltar para casa, apesar da falta dos transportes. Estava no Cais do Sodré a caminho de Algés, a pé. Foi detido também, como nós, sem acusação.
Este foi o primeiro episódio mais centralizado da acção de uma PSP cada vez mais autoritária e militarizada. Digo mais centralizado porque ela já tem presença regular nos subúrbios de Lisboa, com rusgas regulares, imposição de recolher obrigatório, "show-off" de material paramilitar. Esta é a fachada do nosso Estado hoje. É esta a maior proximidade que muitos dos portugueses têm com o Estado: uma PSP cada vez mais militarizada e sobretudo, cada vez mais ignorante. Não sabe nem quer saber que leis deveria defender, só lhe interessa a manutenção da ordem, do regime austeritário, do exílio laboral e do desmantelamento da democracia.
O Daniel Oliveira decidiu dissertar sobre o novo sujeito político de esquerda. Parte do argumentário sobre a que eleitorado se deve dirigir uma alternativa para vencer, já foi dado pelo Hugo Ferreira em baixo. Por isso, partilho só três interrogações que o novo sujeito ainda não respondeu. Talvez o Daniel nos pudesse ajudar. São sobre o programa.
É a esquerda a culpada pelo facto do Partido Socialista ser responsável pelo começo da austeridade, das privatizações, da liberalização das relações laborais e do ataque aos serviços públicos?
Não.
É a esquerda responsável pelo facto do Partido Socialista não querer romper com o memorando, renegociar a dívida e defender o Estado Social e pelo contrário fazer negociações com a direita, assinar o tratado orçamental e a regra de ouro e dizer que é possível crescimento económico e austeridade?
Não.
E o que é que um novo partido de esquerda vai fazer de diferente? Vai romper com a austeridade? Vai renegociar a dívida? Vai devolver salários e pensões? Vai implementar uma reforma do sistema fiscal que permita ter um Estado Social mais forte?
Se a resposta é sim, relembro que o Bloco e o PCP já têm proposto há vários meses esse programa e o PS, invariavelmente, tem rejeitado essas propostas de forma categórica. Com quem espera o novo partido fazer aliança afinal?
Se a resposta é não, eu percebo que para algumas pessoas seja aliciante partilhar responsabilidades de governo com o PS, mas em que parte do programa está um novo partido disponível para ceder? Austeridade, a dívida, o estado social, os impostos, ou tudo ao mesmo tempo?
(cartaz roubado à Gui Castro Felga)
O problema das análises políticas do Daniel Oliveira, em especial quando fala da Esquerda, é que elas revelam sempre, umas vezes expressa outras subliminarmente, um complexo de inferioridade em relação ao PS. Não se nega que o PS continua a ser, ainda hoje, um partido federador de uma parte importante dos sectores sociais progressistas e de Esquerda, nem que, em consequência, o partido continue a ser percepcionado por esses sectores como uma referência política.
Mas pergunta-se: a junção, por si só, desses sectores progressistas do campo socialista com os eleitorados comunista e bloquista - convém sempre relembrar, ainda assim, que os eleitorados são variáveis e não pertença universal dos partidos - é hoje suficiente para que possa emergir uma alternativa de Esquerda que rompa com a austeridade e defenda os salários, as pensões, os desempregados, os precários, o Estado Social? Esses sectores coligados são suficientes não só para disputar o poder e, sobretudo, terão eles a força, o suporte social necessário para conseguirem forçar a ruptura com o programa e a agenda fanática e radical da Direita?
Nas análises do Daniel Oliveira, como nas análises das direcções político-partidárias que ideologicamente lhe são submissas, há sempre uma variável, na minha opinião a mais relevante de todas, que lhes escapa ou é subvalorizada: o exército de abstencionistas. Nenhuma mudança se fará neste país, e um pouco por toda a Europa, sem a mobilização de parte significativa desses sectores. É neles que reside hoje o grande potencial de crescimento da Esquerda, assim os consigamos politizar, saibamos merecer a sua confiança e tenhamos o engenho e o arrojo de os devolver ao seu habitat natural: o da disputa política democrática e da governação da sociedade.
Mas perceber isto implica que não nos conformemos com a pretensa fatalidade de que tudo continuará como está, independentemente dos estragos que foram, são e continuarão a ser feitos pela Troika e pelo Governo. Isso implica pensar além do sistema político vigente, coisa que o Daniel Oliveira não tem feito com muita frequência. Por isso é que se limita a considerar que o futuro da Esquerda está dependente de truques e manobras operadas pela intelectualidade universitária lisboeta, pelos jovens turcos do PS e pelas lideranças partidárias mais ou menos desesperadas com a sua irrelevância política.
O mundo lá fora, apesar de tudo, ainda é mais vasto que a nossa mesa de jantar.