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Da herança

por pedro pereira neto, em 14.12.13

Acabei há minutos de assistir ao filme Hannah Arendt, e se tinha já ficado a matutar aquando de algumas passagens do filme, o seu termo aprofundou esses pensamentos. Antes de fazer a sua apresentação e discussão devo, todavia, deixar bem claras algumas coisas.

 

Em primeiro lugar, a análise que farei é exclusivamente isso, uma análise. Tem uma intenção reflexiva e não uma intenção programática.

 

Segundo, ainda que a minha própria ideologia seja – como sempre deve ser – alheia ao sentido da análise feita eaos seus méritos, é importante, antes de suscitar no leitor qualquer interpretação mais delirante, afirmar-me de Esquerda, pelo que nada do que escreveu deve ser entendido como qualquer elogio

 

Finalmente, que as comparações que traçarei na análise têm bem presentes a diferente escala e amplitude dos contextos comparados, o que significa que estou a comparar mecanismos e modos de pensamento, e não qualquer plano ou horizonte politico-militar e civilizacional.

 

Colocadas estas ressalvas, o que me fica da experiência deste filme e, mais importante, do conteúdo do trabalho de Hannah Arendt relativamente à figura de Eichmann e do seu lugar na História? Duas notas.

 

A primeira nota prende-se com a natureza da argumentação de defesa apresentada por Eichmann: que qualquer juízo moral associável à sua conduta não o assistiu durante a mesma (ou não foi, pelo menos, o principal contributo para essa conduta) uma vez que toda ela decorreu do estrito cumprimento de um mandato hierárquico, adquirido aquando do seu juramento ao regime, às suas prerrogativas, e ao seu líder. Esta argumentação é profundamente weberiana: de um lado, a expressão absoluta – ainda que absurda – de uma racionalidade instrumental levada ao seu extremo (o cumprimento de uma ordem hierárquica assim de qualquer juízo de valor, de natureza moral ou outra); de outro, a adesão ao carisma do líder, a cuja instrução não se opõe qualquer resistência.

 

 Por diversas vezes ao longo do filme me ocorreram paralelos com a actual situação da Europa, e com o exercício da gestão moderna feita por uma classe política plenamente convencida da superioridade e infalibilidade dos seus critérios de racionalidade matemática. A todos, num ou noutro momento, foi possível ouvir argumentações de defesa face ao descalabro resultante da sua acção muito próximas das utilizadas por Eichmann: cumprem ordens, ou antes, limitam-se a executar programas inevitáveis, aos quais qualquer juízo de valor moral é absolutamente estranho. Também colocados perante a consequência dos seus processos de decisão é possível escutar a este ou aquele líder – eleito com base num tipo semelhante de carisma àquele que levou uma significativa parte da população alemã a eleger Hitler – que a sua responsabilidade termina onde o seu contributo também terminam, e que tudo o que são consequências finais de um processo onde foram apenas uma das partes não devem, portanto, ser-lhes imputadas. Não comandam a máquina, apenas constituem uma das suas peças, pode interpretar-se. Curioso que o digam, num meio político pejado de especialistas em Direito, onde qualquer um poderia rapidamente dizer que se é co-responsável por um crime mesmo não se sendo aquele que prime o gatilho.

 

A segunda nota prende-se com a conclusão a que chega Arendt, relativamente à negação da identidade própria em que assentou parte da defesa de Eichmann, e ao lugar decisivo que esta atribuiu ao pensamento como base estruturante dessa identidade. Segundo a autora, negando-se a pensar, o indivíduo nega a sua identidade enquanto ser, excluindo-se desta e dos critérios que se lhe aplicam. Não se é humano se não se pensar ou não se decidir algo a partir desse pensamento. E não se tendo pensado não é possível assumir a responsabilidade de actos irreflectidos que não praticámos.

 

Aquando desta argumentação pensei imediatamente no comportamento de boa parte dos nossos cidadãos e das nossas cidadãs. De como, com frequência, se excluem de pensar a Política, como se a exclusão de pensar a Política não fosse, também ela, um acto político. Mas mais importante que isso, é a negação do pensamento sobre um assunto utilizada como estratégia de desresponsabilização da consequência dos processos dos quais, tendo-nos excluído, queremos ser isentados: “não pensei, não agi, a culpa de quem agiu não pode ser minha, que nada fiz”. Em certa medida, todo aquele que se exclui de participar activamente – pois que excluirmo-nos é uma forma de participação negativa – em processos de natureza política utiliza uma argumentação muito próxima à de Eichmann. E nem abrirei o flanco de debate sobre a profunda incoerência e hipocrisia que constitui o facto de nos (pretensamente) nos excluirmos dessa forma do processo mas reservarmo-nos o direito a usufruir dos direitos conferidos por esse mesmo mundo do qual tentamos excluir-nos.

 

Sem prejuízo da herança weberiana a que fiz já referência, e que enquadra em grande medida o mundo em que vivemos desde o século XiX, ambas as notas podem conduzir-nos a uma assustadora conclusão: em mais do que nos é confortável admitir, a forma como vivemos é, em alguma medida, uma herança de um pensamento racional instrumental de que o nazismo foi a mais negra das concretizações. Os exercícios de desresponsabilização em que incorremos com frequência, seja por inserção estrutural numa qualquer organização burocrática, seja por negação da nossa existência enquanto ser pensante, constituem uma espécie de triunfo post mortem do nazismo: quando as coisas correm mal, a culpa é das ordens que seguimos ou, plano B sempre à mão, não pensámos, e não tendo pensado, não pode ser-nos atribuída qualquer culpa. A dita, nestas coisas, quando não é solteira, é casada com outro.


Talvez, à distância - e é com grande pesar e preocupação que chego a essa conclusão - o nazismo tenha deixado mais sementes no nosso imaginário do que estamos dispostos a admitir. Olhando a política interna israelita, por exemplo, é difícil não chegar a essa conclusão. E pensando na conduta absolutamente irresponsável e criminosa de demasiados políticos, banqueiros de investimento, e especialistas em Direito, parecemos viver efectivamente num mundo de negação constante, e de dano contínuo das vidas daqueles a quem nos separa não apenas a distância e o grau de riqueza, mas a própria humanidade.

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