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André Freire é mais um dos cronistas que se junta à torrente de opinadores sobre a «desunião das esquerdas». A sua explicação parte da ideia de que o problema são as «elites desavindas» da «esquerda radical» que acabam por excluir do «sistema de tomada de decisão» os eleitores que «preferem claramente a unidade» como «demonstram sucessivos estudos ao longo do tempo».
O problema com esta teoria, para além de homogeneizar um campo político (o eleitorado do PCP é igual ao do BE ou de outros partidos?), é que a crítica a tal elitismo acaba por dar um retrato um pouco elitista das massas votantes que não exigiriam mais que uma vaga unidade e a redentora governamentabilidade, ambas sem políticas e sem conteúdos. Essas massas votariam consistentemente numa «esquerda radical» mas no fundo desejariam apenas que ela acabasse por ceder ao social-liberalismo.
A insistência na predisposição do eleitorado por uma aliança que incluiria necessariamente o PS acaba por ser um remake da teoria de que há um espaço político à esquerda do PS pronto a ser ocupado por quem se mostre mais ponderado que estas «elites radicais». O que torna curioso que, os cenários apresentados para uma possível solução para o beco sem saída desta desunião que aproveitariam mais diretamente este espaço (a vitória eleitoral de um «partido do entendimento» ou a cisão de esquerda no PS) se apresentam como quase impossíveis apostando-se noutro: a «reforma do sistema eleitoral que premiasse os partidos que cooperam para a formação dos governos». Dito de outra forma: reduzir a proporcionalidade, afunilar as possibilidades de eleição de pequenos partidos, criando um sistema à alemã ou francesa «um sistema misto (...), mas com duas voltas na componente uninominal». Quanto a isto creio que é preciso ser claro e escapar aos eufemismos: não se trata de «premiar» a cooperação mas de limitar possibilidades. Mas será que isso não é o caminho mais rápido para reforçar o binarismo das alternância sem alternativa? E convém também acrescentar a pergunta: nos países que se parece ter como modelos (França e Alemanha) o sistema eleitoral é mais justo? Foi por causa deste sistema que existiram as malogradas experiências de governo com verdes e PCF? Estas julgam-se agora como um sucesso?
Curioso é também que, apesar de se lançar o ónus do problema para cima dessas elites desavindas da esquerda radical, não deixa de se constatar o óbvio: «o PS também não ajuda para a concretização de alianças à esquerda (...) porque sempre foi um dos partidos mais centristas da família socialista europeia» e «porque, apesar da devastação criada pelo Governo mais neoliberal de sempre em termos de desinvestimento na escola pública, de estrangulamento financeiro das universidades públicas, de desinvestimento e favorecimento na ciência, de dificultação do acesso à saúde, de cortes nas prestações sociais e nas remunerações de servidores públicos e reformados, etc., a preferência de alianças no PS continua a ser com a direita.» Só que, apesar de tudo isto, no momento de desbloquear o impasse à elite política social-liberal incrustada no carreirismo e submersa nos interesses dominantes não se exige nada. Cabe juntar mais questões: não sairia esta outra elite bem mais elitista claramente reforçada de uma reforma eleitoral que introduzisse círculos uninominais? Para que precisaria ela da esquerda se a pressão do voto útil num sistema a dois turnos como é proposto lhe é mais do que favorável?
Como já referi alhures, se parte da chave da questão da unidade está na discussão política e na questão do programa, outra parte não menos importante está na avaliação da natureza do social-liberalismo. Há várias hipóteses de leitura da situação que se agarram desesperadamente à ideia de que o oportunismo do Partido Socialista é uma oportunidade para os partidos à sua esquerda, ou seja, que se ameaçado e perante a escolha entre perder eleitorado fortemente para a sua esquerda e aliar-se governativamente a esta mesma esquerda o PS escolheria (por mero pragmatismo) a segunda alternativa e o que redundaria (?) numa governação à esquerda.
Creio que é um exercício especulativo ilusório e que ignora as diferenças entre a velha social-democracia reformista e osocial-liberalismo realmente existente desde a «terceira via». É também pôr de lado ostensivamente os vínculos que ligam esta opção ao donos do país, da Europa neoliberalizante e das finanças mundiais.
Para além do mais, os tempos excepcionais em que vivemos tendem a colocar-nos perante escolhas difíceis como as de memorandos, resgastes, austeridades light, submissão à finança internacional. E uma esquerda que abdicasse do que é para se manter à tona de um sistema eleitoral adverso afogar-se-ia nesse pântano social-liberal.
Tal como vários outros autores, existe no artigo de Freire um eclipse da estratégia, uma obliteração das políticas que realmente contam. Aqui este vazio é preenchido por outras contas que parecem de merceeiro: há 20% para se arrastar de A para B, de uma oposição supostamente estéril para uma governabilidade supostamente construtiva. Como se o eleitorado fosse fixo. Mas a perspetiva de André Freire também nos pode fazer pensar noutro cenário: tendo o mérito de nos relembrar quão politicamente relevante para os resultados é o sistema eleitoral sublinha a artificialidade da construção e pode mesmo sugerir que o caminho contrário ao proposto, um reforço forte da proporcionalidade, poderia ser um terramoto político...