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Disclaimer: estou a escrever este post às 21h50. Correndo o risco de ser desmentido pelos factos, é importante deixar registada a minha opinião neste momento sobre os eventos em curso no espaço em frente à Assembleia de República, onde decorre uma "manifestação" de forças de segurança.
Escrevi "manifestação", entre aspas, conscientemente. Porquê? Porque mesmo respeitando a raíz da palavra - manifestar, ou seja, tornar do conhecimento de outrém, ou dar de conta de algo - a verdade é que os eventos em curso não me parecem mais que uma gigantesca catarse, praticada por pessoas a quem a verdadeira mudança, e sobretudo os comportamentos que poderiam suscitá-la, não parecem interessar realmente. Afirmo isto por diversas razões.
Primeiro, por mover os manifestantes a intenção de obrigar os legisladores a alterar alguma da legislação que afectou as forças de segurança em Portugal. "Manifestar", nesse sentido, significa comunicar ou dar conhecimento a esses legisladores da insatisfação dessas forças de segurança. A pergunta que impõe fazer, neste caso, é a seguinte: os legisladores não dispunham dessa informação? Obviamente que dispunham. Desse ponto de vista, uma "manifestação" não serve, então, o propósito de comunicar algo, mas sim o de associar a esse conhecimento que é dado a outrém o argumento do número dos insatisfeitos, assim tornado visível nas ruas. E a dimensão desse número, usada como factor de coacção, poderia suscitar o cumprimento da intenção dos que se "manifestam", ou seja, que a legislação que os afecta seja alterada.
Tudo isto foi feito em Novembro. Estamos, hoje, Março. Para hoje foi marcada nova "manifestação". Esta é a minha segunda razão para usar esta expressão entre aspas. Porquê? Por se tratar da segunda vez que tal "manifestação" tem lugar exactamente no mesmo sítio, e exactamente com o mesmo conjunto de intenções. Que são, recordemo-lo, dar conhecimento de insatisfação, e dar visibilidade ao número dos insatisfeitos.
Volto a perguntar: não dispunham os legisladores dessa informação, isto é, de que existe insatisfação, e de que ela provém de um número significativo de elementos das forças de segurança? Obviamente que sim. Então, serve para quê, esta "manifestação"? É, simultaneamente, uma catarse e uma mordaça. Cria uma válvula de escape para a insatisfação, contendo-a num formato e sob uma liderança considerados de perigo menor, e de potencial real de transformação absolutamente nulo.
Não há novidade resultante desta "manifestação". Quem precisava de saber da insatisfaçao e do número dos insatisfeitos já o sabia. Repetir a "manifestação" é não apenas redundante mas amordaça outras formas de protesto - elas, sim, com outro potencial de influência e de transformação da prática dos legisladores. Não é preciso identificá-las, bastando apenas salientar que colocariam em risco determinados aspectos da vida dos próprios que consideram garantidos e acima de qualquer consequência da sua acção, independentemente daqueles sobre quem ela pesa.
Podemos questionar se é legítimo passar para essas formas de acção menos convencionais. A resposta a essa pergunta varia: mas podemos começar por devolver a pergunta, questionando a convencionalidade da violência que a legislação dos últimos três anos tem constituído sobre a vida da maior parte da população. Não creio que seja possível ser violentado para lá do que é tolerável à luz da Democracia, mas depois alegá-la para justificar a mordaça colocada sobre as formas de protesto que deviam corresponder a essa violência original. Sobretudo quando ela, essa violência original, é praticada por pessoas que não respeitam nem cumprem a Constituição que enquadra essa Democracia que usam como escudo. Não podemos furar as regras, e depois clamar pelo cumprimento delas quando isso nos é conveniente.
A dimensão catártica desta "manifestação" é ainda visível na absoluta ausência de preparação ou de estratégia para, hoje, produzir qualquer mudança política significativa. É possível dizer que um elemento de uma força de segurança, que jura fidelidade a um país e às suas leis, nunca deixa realmente de sê-lo, mesmo quando protesta, creio que a questão é mais funda, e radica precisamente na real ausência de intenção na produção genuína dessa mudança - e nisso são, deprimentemente, portugueses, feitos daquela portugalidade que prefere colher o benefício sem ter o trabalho, e que prefere que a História o bafeje com o sacrifício alheio. Mas é importante ir mais longe, e assumir que essa mudança nunca foi intenção desta "manifestação".
Porquê? Porque ninguém avança para uma manifestação a sério sem duas coisas, e nenhuma delas foi visível até este momento, 21h50: um conjunto claro de reivindicações, com calendário definido e medidas sancionatórias do seu incumprimento; e uma estratégia clara de demonstração de poder de transformação da realidade política do país, traduzida numa estratégia de tomada efectiva não apenas da escadaria mas do edifício. Quem, objetivamente, quer conseguir algo através de meios humanos, ou seja, de colectivos de pessoas, não concentra esforços de tomada de um espaço apenas na frente do mesmo, como tem sido visivel esta noite. Se a ideia é contornar as forças que protegem o edifício, parece-me claro que as forças de segurança em protesto têm formação suficiente para gizar um plano que o permita, e o qual passava por criar diversos focos de tensão, espartilhando aqueles que protegem o espaço ao ponto de serem incapazes de assegurar essa protecção. O que vemos até este momento? Meia dúzia de pessoas, todas concentradas no mesmo sítio, "aparentemente" a tentar "furar" uma barreira policial. Sejamos sérios: há matinés de miudos em discotecas da cidade de Lisboa onde a intenção de furar uma barreira de pessoas é mais consequente.
Tudo isto parece demasiado encenado para ser levado a sério. É um "protestozinho", um "agarrem-me senão vou ali" demasiado impreparado (para não dizer premeditadamente impreparado) para ser tomado como uma tentativa de transformação real de algo. Sobretudo de um algo cujo alcance continua a ser defendido como possível através do "diálogo", como se, três anos depois de conversa, os legisladores "dialogantes" não tivessem tido já oportunidade de tornar consequente esse diálogo. Não o foi até agora. Não foi por falta de diálogo, mas de intenção. E querer continuar a resolver as coisas com diálogo é a materialização acabada de que a transformação real não é objectivo de qualquer das partes envolvidas, mas sim a criação de uma catarse colectiva, que vá esfumando aos poucos até a mais renitente das fibras de indignação nacional. Das tais de que vamos tendo cada vez menos exemplos.
Até a forma como uma mera recepção por parte da Presidente da Assembleia da República, com a promessa de "levar" as "reivindicações" aos grupos parlamentares - como se eles as desconhecessem ainda... - é suficiente para dar por encerrado o circo. A mesma pessoa que parece só ter lido um livro e conhecer uma citação, que considera a casa da Democracia demasiado boa para aqueles e aquelas em cujas costas ela está apoiada, "promete" agir como a DHL do protesto securitário, e eis que toda a "manifestação" parece ter cumprido o seu grande objectivo: alguém do mesmo partido do Governo, que não consegue esconder que a ele ainda pertence em praticamente tudo o que faz, vai levar ao... Governo uma informação que ele... já tem.
É isto, a "democracia" e a "manifestação" em Portugal, em 2014: este imenso monte de nada, que estranhamente nos deixa satisfeita a barriga da honra. Vemos a encenação dela, e como bons telespectadores que somos da nossa própria vida, enternecemo-nos com mais uma valentissima demonstração de coisa nenhuma. Somos, definitivamente, os maiores. Já o dizia Vitor Gaspar.
Fiquemos todos, pois, a aguardar a próxima "manifestação". Aquela em que alguém vai dizer a outra pessoa o que ela já sabe, finda a qual ameaça que, proximamente, pode ter de vir dize-lo outra vez.