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A nostalgia é uma força tramada em política. Já a vi torturar quem passou fome no fascismo ao ponto de acabar por confessá-lo como o melhor tempo da sua vida. Já a vi seduzir o reacionário assumido ao ponto de celebrar a radicalidade do PREC como a sua experiência mais intensa e marcante.
Apesar disto, sei que a normalização do comportamento a partir do fragmento da memória não é simétrica ao potencial transformador da lembrança da prática revolucionária passada. A nostalgia enche facilmente de conservadorismo mas tem tendência a envolver a revolução numa névoa não actualizável: «era tão bonito», «foi um sonho», «são coisas da idade».
Sei que, por trás de tudo isto, é a maravilha da juventude desejada que esconde um tempo em que tudo era simples. Na ilusão de perspetiva, antes era sempre simples e agora é tão complicado.
Conheço também o poder da reescrita hegemónica das memórias, os arredondamentos que limam de forma selvagem todas as arestas que não adaptam à narrativa repetida constantemente.
Sei que começo a entrar na idade perigosa em que a nostalgia é capaz de irromper de repente com todo o seu poder encantatório.
Sei que vivo numa geografia perigosa que muitos quiseram transformar no país da saudade. Não me pretendo desculpar com os males da idade ou do país.
E, contudo, dei comigo a sucumbir-lhe, a pensar num tempo em que a militância era alegria, em que fazíamos política lado a lado e nem pensávamos que fosse possível fazê-la de cima para baixo de tal modo as verticalidades não se encaixavam no que construíamos. Um tempo em que a divergência era a naturalidade da inteligência e da criatividade a dialogar e não o sinal de uma agenda obscura infiltrada ou a ameaça de uma traição em potência. Ali onde a desconfiança não podia ser regra e o sectarismo parecia tão longe. Onde se fazia porque se sentia que se devia fazer sem a razão cínica do calculismo.
Terá existido? Se não, poder-se-á ainda inventar?
Sei dos efeitos perniciosos. Sei que ficar deslumbrado com esse passado é meio caminho andado para a desilusão com o presente e assim ficar paralisado face aos impasses futuros. Sei que, por outro lado, se pode fazer da fraqueza força e que é preciso projetar para o futuro esse saber-fazer (im)possível da militância-revolução. Ou, escrevendo-o ainda mais como um cliché, pode ser que se consiga usar a nostalgia para ter saudades do futuro reinventando o que é urgente.
Ombro a ombro, solidariedade vivida num alter-quotidiano molecularmente resistente à força dos destinos sociais que nos querem impor. Sem se fechar numa conchinha com os que nos parecem ser mais iguais. Irreal por irreal, ao menos que a nostalgia se desalinhave em utopia e seja o nome de uma prática militante permanentemente em ebulição e não de um austero destino final.
Faz hoje um ano que morreu Clément Méric, assassinado por neo-nazis em Paris. Faz hoje doze dias que o Front National ficou em primeiro lugar nas eleições europeias em França (para não falar no resto).
Eu sei que os meus colegas de blog não vão ficar satisfeitos com a minha estreia tão pouco palavrosa, mas hoje queria mesmo só lembrar isto. Pelo caminho, vou-me lembrando a mim própria de que ser preguiçosa não vale e de que é preciso intervir e perder o medo, mesmo que se comece pelo medo pateta de escrever num blog uma vez por semana.
Até já.