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A velha música de Cartola não era banda sonora. A leitura fez-se no silêncio. E, contudo, os seus versos insinuavam-se obstinadamente:
«Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.»
O samba não era apenas o ritmo da distração ou da incapacidade de concentração. Mas a música também não se encaixava diretamente no que se lia. Se o pessimismo da letra de Cartola nos lembra que o mundo é um moinho, o livro do João Carlos Louçã (Call Centers, Trabalho, Domesticação e Resistências, Deriva Editores, 2014) traz-nos outra imagem: a do mundo do trabalho contemporâneo como um call center. Nele é todo o consenso dominante sobre o trabalho e os seus modos de organização que se encontram dissecados lucidamente: precariedade, produtivismo absurdo, controlo asfixiante de ritmos e espaços, normalização de procedimentos, avaliações como forma de poder discricionário, subversão por cima de elementos basilares das tradicionais relações de trabalho como o horário, o salário ou o contrato, imposição das ideologias do sucesso, da competição e do falso espírito de grupo ao mesmo tempo da atomização e do estilhaçar da consciência de classe.
Sob a forma da «modernidade regressiva», o mundo é um call center que nos vende a naturalização da nossa exploração. O call center é, assim, o símbolo da destruição de direitos e um barómetro das mudanças no trabalho nas últimas décadas. O João Carlos consegue juntar o enquadramento teórico-político com a análise empírica produzindo um documento importante para se pensar a precariedade em Portugal.
Mas talvez a canção tivesse razão em insistir. Talvez tenha insistido porque afinal o call center é igualmente um moinho no sentido de ter a força para triturar os sonhos da intermitência permanente das vidas precárias. Este livro dá voz às perceções para além dos sonhos triturados e às ilusões persistentes de quem trabalha num call center mas mostra ainda o call center como lugar de resistências improváveis, dos micro-boicotes a outras formas de «luta de classes de baixa intensidade» nas quais se combate ingloriamente contra um «patrão invisível».
Serão importantes ou viáveis? A pequenez invisível do gigantismo patronal que não tem respeito pelas vidas que esmaga tem força desproporcional face à «identidade frágil» nanizada a golpes de falsa motivação e de verdadeira desvalorização do trabalhador.
Gigante ou moinho? Fará diferença? Lutar nestas circunstâncias será apenas quixotismo?
Um novo embate entre a música e o livro impõe uma escolha. Hoje, estando como estamos à beira do abismo coletivo, para que não herdemos dos nossos amores e das nossas lutas só o cinismo, é preciso preferir o optimismo da vontade transformadora que arrisca que outro trabalho é possível à contemplação pessimista dos sonhos triturados.
E o João Carlos lembra-nos das forças que temos para além dos Quixotes:
«Rocinante e Sancho Pança sabem que são eles que permitem as investidas contra os moinhos de vento, mesmo quando é o fidalgo alucinado que mantém a atitude altiva e, no seu delírio, acumula glórias. Até um dia que resolvam deixar de o fazer.»
Ainda que o mundo seja um moinho é importante lembrar que os sonhos triturados são os de Sancho Pança e de Rocinante e que a engrenagem se alimenta desses sonhos que cria e destrói. Mesmo que não se vejam falsos gigantes mas verdadeiros moinhos, com toda a consistência da pedra, há que escolhar embater contra eles. Porque nós, nós, os pequenos, com a consciência de que só nos agigantamos quando somos todos do mesmo tamanho conseguimos cavar bem mais do que um abismo com os nossos pés.
E quem diz que os sonhos triturados não se podem semear?