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Quando a crise no grupo Espírito Santo rebentou, alguma direita apressou-se a divulgar a tese da imensa coragem de Passos Coelho em não emprestar dinheiro dos contribuintes a Ricardo Salgado. Mais, teria sido uma alteração de paradigma na forma como o poder público se relaciona com a banca privada. Uma autêntica revolução silenciosa que se arriscava a passar despercebida pelo ruído provocado pela queda do gigante da economia nacional. Era portanto necessário sussurrar aos quatro ventos a grandiosidade da obra de Passos Coelho tentando evitar o ridículo. Caído o Espírito Santo em desgraça, era urgente pôr em marcha o espírito santo de orelha liberal para disputar terreno sobre o sucedido.
Para tal, era preciso esquecer pormenores: esse «não» surge apenas quando o grupo Espírito Santo estava mais que afundado, tal empréstimo teria sido nada menos que um suicídio político nestas circunstâncias e a suposta não intervenção terá representado um escolher do lado vencedor nas guerras intestinas do grupo. Aliás, sobre os meandros desta decisão e sobre as suas consequências futuras ainda não saberemos da missa a metade.
A rutura de paradigma enfrentou imediatamente revezes. Uma infografia do Expresso lembrava entretanto os mais incautos que este governo é de continuidade no que toca à promiscuidade entre os interesses do BES e os do centrão político nacional. E, claro, quando se conheceu os tons alaranjados da nova administração do BES a tese da mudança de paradigma parecia ter sido enterrada.
Mas eis senão quando José Manuel Fernandes decide ressuscitar o aparente nado morto. Adorador de um livre mercado mais puro que aquilo que alguma vez tenha existido no país e no mundo, Fernandes vê no que sucedeu o exemplo acabado da missão da política e do bom funcionamento do sistema financeiro: faliu quem devia e os mercados funcionaram sem intervenção estatal. Contudo, a narrativa não fica por aqui. JMF, deturpando a natureza da crise internacional, compara a dívida do BES com a do país e aproveita pelo caminho para colar Salgado exclusivamente ao PS (quer pela prática de endividamento acima das suas possibilidades quer pela proximidade política). Teria caído agora em desgraça o Sócrates da finança depois do mesmo ter já acontecido ao Sócrates da política.
A ironia da arte retórica de JMF é utilizar dois casos em que desregulamentação do sector financeiro permitiu atrocidades que estamos/vamos pagar todos (a form como crise financeira internacional afetou aos países da Europa do Sul e a construção estilo castelo de cartas de um banco nacional sobre o crédito fácil e sem grande supervisão) para argumentar a superioridade do neoliberalismo e rejubilar porque o mercado funcionou. Invertam-se os termos do discurso e, de um passos, o neoliberalismo que promove a ditadura financeira não é o problema mas a solução.
A queda do Espírito Santo Salgado surge branqueada numa tese política sem sal mas temperada com um aparente zurzir nos interesses estabelecidos: a culpa seria dos monopólios familiares, da sua promiscuidade com o Estado, dos entraves à concorrência que persistem no país. O ideal do «mercado absolutamente livre» que nunca é suficientemente livre permite encenar uma oposição ao poder vigente por parte da ideologia que melhor o serve. Não deixa de ser interessante que parte da explicação se coloque num terreno que aparentemente seria desvantajoso aos defensores dos interesses capitalistas: o da ideia de um capitalismo nacional que é liberal no palavreado mas dependente do Estado nos negócios. O liberalismo aceita jogar no interior desta contradição aproveitando-a para pugnar por uma fuga para a frente ainda maior face aos tais mercados.
A outra face da mesma moeda é a pequena realidade das falcatruas e das lutas entre fações do capitalismo nacional que se mascara com o engrandecimento do político excecional que, em nome do erário público e apoiado numa ideologia bem intencionada, nega submeter-se ao homem mais poderoso do país. Não fosse tudo isto precisar de se colocar sob a capa de um Passos Coelho super-herói improvável contra os interesses dos capitalistas vilões e passaria mais facilmente...
Crato era o doutor exigência com a missão de exterminar o facilitismo. Era na prova que pretende obrigar os professores a fazer que ia demonstrar o seu excesso de zelo: os professores deveriam ser avaliados uma segunda vez pelos mesmos conteúdos porque a avaliação feita por uma instituição universitária regulada pelo Estado não era suficiente.
Afinal, em vésperas da sua realização, a «prova de avaliação de conhecimentos e capacidades» é amputada da sua componente específica (a que avaliaria os conhecimentos disciplinares necesssários para a realização do seu trabalho) e apenas resiste a componente geral, algo ridículo que só se pode descrever como estando a meio caminho entre uma espécie de PGA e um teste de QI abrutalhado para professores. É um remendo temporário, diz-se, mas é significativo. E é mais uma ocasião para perceber que o discurso da exigência é tantas vezes instrumentalizado por várias outras causas. O que interessa é mesmo realizar a prova e excluir, não o que é avaliado.
A culpa de todos os males da educação era do eduquês vazio de conteúdos disciplinares sérios, não era dr Crato?
O professor de Filosofia Paulo Tunhas escreve um artigo a defender os bombardeamentos e a invasão da Palestina pelo exército israelita na mais recente plataforma panfletária online da direita portuguesa. É sempre interessante confrontar-nos com as estratégias argumentativas e as falácias de um professor de Filosofia (como também já fui mestre desse ofício, sintam-se à vontade para fazer o mesmo comigo). Claro que este artigo não é um tratado de Filosofia. Mas situa o debate numa forma a-histórica e sem contexto social onde alguns pensam que a Filosofia se deve enclausurar para estar mais confortável. Apesar de não estarmos à vontade na planura deste tipo de argumentação, acamparemos por aí. O escopo deste texto é, portanto, limitado, e segue de perto o tipo de argumentos apresentados.
O artigo começa com a acusação de má-fé de quem se oponha às suas teses (será que essa tal má-fé não explicada é a modalidade central de oposição às teses israelitas?) como forma de introduzir um pseudo-pedido de desculpa pela «elaboração do óbvio» que se encena no texto. Começa portanto com um estratagema que não é brilhante (porque é demasiado óbvio na sua artimanha) mas que é significativo do objetivo: todo o bom senso se deveria render ao óbvio israelita, fora dele apenas a má-fé de uns ou a ingenuidade de outros. Aquele que foi um dos pensadores da evidência, apresenta-se agora como profeta do óbvio.
Sublinhe-se que este óbvio segue fielmente a pauta que a embaixadora de Israel em Lisboa, Tzipora Rimon, apresenta num artigo publicado no jornal Público.O óbvio que enaltece o sistema anti-míssel israelita «capaz de identificar e interceptar os mísseis passíveis de atingir centros populacionais», que cria agora uma mitologia sobre os avisos prévios dos bombardeamentos israelitas e a tese de que o Hamas procura, pelo contrário, atingir áreas residenciais israelitas e de que as vítimas dos bombardeamentos são culpa desta organização que usa civis como escudos humanos. Em algumas partes, de tão óbvios, os argumentos do filósofo e os da embaixadora confundem-se ao ponto de parecer cópia. E o que acr escenta Tunhas não aprofunda nem melhora a argumentação. O óbvio enquadra-se afinal numa máquina de propaganda por repetição.
Depois do apelo ao óbvio, Tunhas prossegue com a ilustração com a qual começa a pensar este conflito. A imagem de partida, claro, escolhe-se como início da narrativa e como arrasamento da história: usam-se os detalhes da execução dos adolescentes raptados de forma a ganhar o lado emotivo do leitor. E, seguindo-se o exemplo do assassinato de um adolescente palestiniano por colonos israelitas, tal não surge para aparentar isenção ou mostrar que há violência dos dois lados mas para tentar provar a diferença: o primeiro-ministro israelita «reagiu prontamente, apelidando o acto de “terrorismo”» enquando os palestinianos teriam regozijado sanguinariamente com a morte dos israelitas(segundo os exemplos apresentados e escolhidos a dedo, dos quais se poderia perguntar se são significativos do pensamento palestiniano sobre o tema).
Só que, poder-se-ia também afirmar, a diferença que é mais significativa no que diz respeito ao desenvolvimento do conflito é que o primeiro-ministro israelita que diz não distinguir terrorismos bombardeia e invade a Palestina sob o pretexto de um dos assassinatos mas não bombardeia nem invade os colonatos extremistas israelitas por causa do outro assassinato.
Momento seguinte: o lançamento de rockets que teria «ao mesmo tempo» subido dramaticamente (aqui o óbvio será tão óbvio que não se acompanha de provas, de números ou fontes indepedentes). Repetindo a embaixadora, Tunhas afirma «claro que o muito efectivo sistema de defesa israelita, a Cúpula de Ferro, tem impedido que o número de mortos seja elevado.» O pressuposto de que o exército israelita bombardeia humanitária acompanha-se pelo pressuposto de que o Hamas lança rockets da forma mais assassina possível. Pressuposto que se procura fazer assentar na carta do Hamas de 1987 (não há documentos ou tomadas de posição mais recentes?) e cuja citação apresentada se encontra profusamente na internet como originária de outra fonte.
Dito isto, Tunhas insurge-se contra a «fauna abundante» que defende que Israel «não deveria reagir» (reagir ao quê?), para imediatamente a seguir afirmar: «no fundo, Israel deveria deixar de existir, deveria desistir da sua própria sobrevivência.» Ou seja, esquecendo já os assassinatos que foram apresentados como motivo, Tunhas, como a embaixadora de Israel, passa magicamente da ideia do bombardeio inofensivo do Hamas ao perigo de sobrevivência de Israel. A sobrevivência de Israel é uma justificação também ela desproporcionada.
O momento óbvio seguinte é o que imputa as vítimas civis exclusivamente ao Hamas:
«Se há vítimas civis, isso deve-se, antes de tudo o mais, ao facto de as armas do Hamas e os seus centros de acção se encontrarem propositadamente localizadas no meio de populações civis, ou em mesquitas, hospitais e escolas, e de o Hamas tentar impedir que as pessoas, antecipadamente avisadas dos ataques por Israel, saiam do sítio onde estão, e onde estão também os responsáveis políticos e militares terroristas que dessas pessoas se servem como protecção.» A repetida tese do «aviso prévio» parece ser agora peça central na argumentação dos defensores do exército israelita. Curiosamente, os adeptos recém-convertidos ao «aviso prévio» de ataques não achariam tão humanitários os ataques com aviso prévio feitos pela ETA. E, para além de seletivo, o argumento é claramente falacioso como prova o artigo que responde no Público à embaixadora.
O aviso prévio é uma sms/telefonema enviada aos milhares com três minutos de antecedência. E se quisermos procurar um óbvio alternativo facilmente equacionaremos que é improvável que um exército empenhado em assassinar os dirigentes do Hamas e eliminar os misseis supostamente escondidos avise os alvos antes de os atingir o que tornaria as ações ineficazes.
Este artigo termina originalmente, com as razões que o autor encontra para a «extravagante vontade de acreditar no Hamas» (claro que só se pode partir do princípio que quem levante dúvidas sobre a atuação do Estado israelita estará do lado do Hamas, organização que se acabou de denegrir e que sobre a extravagante vontade de acreditar piamente no exército israelita nada é dito). São cinco razões:
1- «Para além de uma genérica piedade com o sofrimento humano que só pode merecer simpatia e acordo.» Sobre esta razão prévia nada se diz mas sobre ela impende a suspeita de ingenuidade.
2- «Uma certa vocação para Cavaleiro Andante que vem dos sonhos da infância e que não resiste ao apelo do quadro de um David (imaginário) a lutar, quase indefeso, contra um Golias (não menos imaginário).»
3- «Um secreto gosto romântico pela violência, sobretudo pela violência longínqua e “revolucionária”.»
4- «Uma não excessiva consideração pela democracia. Israel é um país democrático, e a democracia não excita (a não ser nos últimos delírios com a “Primavera Árabe”). Para mais, sendo localizada naquela região, Israel estraga a paisagem. Está culturalmente demasiado próxima de nós para poder geograficamente estar onde está. Ao mesmo tempo, é real. De uma certa maneira, precipita-se em Israel, porque Israel vive numa situação-limite, a questão da possibilidade e da sobrevivência da democracia.»
5- «Anti-semitismo. É certamente uma palavra que se deve usar com muito cuidado, mas também aqui, em certas bandas mentais, a coisa entra em jogo.»
Ou seja, desfilam as personagens estereotipadas na cerimónia de encerramento do artigo: dos ingénuos, aos revolucionários de má-fé aliados aos terroristas sanguinários. Já para não falar anti-semita que é lançado de forma aparentemente inocente mesmo no final do artigo, como acusação que fica a pairar sem destinatário conhecido. Destes fantasmas psicológicos de Tunhas que procuram ocupar todo o espaço de quem não louve o comportamento do Estado israelita pouco resistirá a uma análise. Espremidos os fantasmas caricaturais que só serão óbvios para quem lhes pretende dar vida, a única novidade é também um velho argumento destes debates: a imagem utópia da democracia israelita. Mas, entrando por aqui, perde-se facilmente: porque é tudo menos óbvio que um Estado religioso, que depende da ocupação e da expulsão dos habitantes de um território, que sobrevive assente na exclusão dos palestinianos e na força permanente das armas seja um Estado democrático. E parece-me óbvio que será preciso mais esforço intelectual do que a propaganda do costume para quem queira justificar o que se passa agora mesmo em Gaza.
Cheguei a Lisboa em setembro de 2010 para estudar numa universidade. Chegar a Lisboa foi chegar à universidade, à academia e ao meu trabalho mas também à vida noturna do Bairro Alto ou do Cais do Sodré, ao CCB, aos teatros na baixa e na Praça de Espanha, à Gulbenkian, aos miradouros das colinas, à noite de alfama, do intendente e da mouraria, aos jardins do Campo Grande ou do Parque Eduardo VII, aos restaurantes clandestinos, à feira da ladra, à zona ribeirinha, às praças que se ocuparam e às ruas por onde nos manifestámos nestes quatro anos. Mas para viver esta cidade na sua plenitude com autonomia são precisos transportes públicos. O direito à cidade é indissociável do direito à mobilidade enquanto possibilidade de nos movimentarmos na cidade independentemente do dinheiro que temos no bolso. Para trabalhar, como para viver, precisamos de nos transportar autónoma e livremente pela cidade.
Muito mudou a esse respeito desde 2010. Há quatro anos pagava 9,8 euros de passe, agora pago 35 euros. O número de carreiras diminuiu, passámos a ser sardinhas enlatadas no metro, especialmente na linha verde. Os tempos de espera e os preços aumentaram. E as pessoas que todos os dias têm de se movimentar começaram a ter dificuldades em pagar os transportes.
Foi com esse desmantelamento dos transportes públicos que me deparei na semana passada. Na quarta e quinta-feira assisti a duas situações nos transportes de Lisboa que me causaram náuseas e muita raiva. Ambas ocorreram no mesmo contexto: autocarro da Carris; entram três homens vestidos de azul claro; posicionam-se estrategicamente no autocarro para que dele ninguém possa sair; começam a pedir os passes e bilhetes a todos os passageiros.
No primeiro autocarro em que isto aconteceu eram 19h30 da tarde. Nele um reformado com alguma idade que ia no primeiro banco a conversar com o motorista é abordado diretamente pela entrada do primeiro fiscal. O senhor olhou-o espantado e disse que não tinha bilhete, que era uma viagem pequena, já não tinha família para o ajudar e a reforma não dava. O fiscal teve apenas uma reação: “faça favor se levantar, porque vai sair nesta próxima paragem comigo”. O homem olhou para o motorista, baixou a cabeça, agarrou no saco verde das compras e dirigiu-se para a porta de trás. Iria ser obrigado a pagar uma multa que pode ir de 180 a 270 euros. Será a reforma do homem suficiente para pagar a multa? Terá ele dinheiro para pagar a próxima viagem que o levará a casa?
Mas foi com estranheza que quando chego à paragem de autocarro às 8h30 do dia seguinte para esperar o 747, dou de caras novamente com três pessoas vestidas de azul claro e óculos escuros. Ia haver nova fiscalização. Entrámos juntos quando o autocarro chegou. Nele uma senhora com quem costumo partilhar o autocarro àquela hora colocou o passe na máquina de fiscalização mas nesta não apareceu a luz verde. Disse ao fiscal que não sabia porquê mas que não tinha dinheiro para pagar a multa na hora e perguntou se lhe podiam mandar a multa para casa, dando o BI com a morada. O fiscal teve a mesma reação: “pode levantar-se por favor, vai ter de sair comigo na próxima paragem”. A senhora pediu e insistiu para não sair, porque entrava às 9h no trabalho e se chegasse atrasada seria penalizada. O fiscal não acedeu: “já lhe disse, sai comigo na próxima paragem, regras são regras”. A senhora olhou as companheiras, baixou a cabeça e saiu na paragem seguinte.
No início deste ano já tínhamos sido surpreendidos com uma campanha pidesca em que a administração da Carris e do Metro propunha que os utentes se vigiassem uns aos outros. Os sinistros olhos a observar-nos que encontrávamos em todas as estações e carruagens desapareceram nas últimas semanas. Mas não desapareceu o seu objetivo: como as pessoas não se denunciaram umas às outras, foi preciso reforçar as equipas de vigilância e punição na hora. Equipas de fiscais implacáveis sempre que veem um delator cuja reforma não chega para pagar o bilhete ou a coima. Inabaláveis perante uma mulher que não tem dinheiro na hora e vai ser penalizada por se atrasar no trabalho.
Nos seus estudos sobre o poder disciplinar, a vigilância e o nascimento das prisões, Michel Foucault dizia que “somos menos gregos do que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas, nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmo renovamos, pois somos suas engrenagens”. As sociedades ocidentais estão confinadas a um processo de vigilância e punição permanente. Loui Wacquant, por seu turno, mostra-nos como a intensificação do neoliberalismo se construiu através da emergência de um Estado-Penal com o objetivo de vigiar, punir, controlar e reproduzir a pobreza que ele próprio cria e da qual se alimenta.
São esses dois fenómenos que representam os senhores das camisolas azuis claras que interrompem os nossos autocarros. Eles representam, como indica Foucault, um discurso claro de que nos devemos sentir vigiados em qualquer momento. Mas como também indica Wacquant, eles mostram-nos como a instauração de um regime de vigilância e regulamentação permanente, ocorre ao mesmo tempo que se intensifica a destruição do Estado-Social e se alimenta uma lógica de punição sobre os mais pobres.
É contra essa sociedade de vigias e de dispositivos de punição da pobreza que se tem que levantar uma intervenção democrática. Heitor de Sousa, economista de transportes e dirigente do Bloco de Esquerda, foi diretamente a essa discussão no passado dia 11 de julho no Público: dizia, com muita clareza, que na gestão dos transportes em Lisboa é preciso clarificar se queremos os transportes submetidos às regras da democracia ou às regras do mercado.
As pessoas estão com mais dificuldades e cada vez mais pobres com as medidas de austeridade. Mas como se isso não bastasse, estão ainda a ser punidas por não terem dinheiro para pagar os transportes de que precisam para viver.
É mesmo esta a sociedade que queremos?
O que está a acontecer com a avaliação das unidades de investigação em Portugal é absolutamente preocupante. O governo já mostrou com muita clareza que o financiamento a investigadores em doutoramento é para ser aniquilado. E Pires de Lima já mostrou também qual é a orientação: condicionar o financiamento a investigadores e projetos que tenham ligação ao mercado e que dele possam obter recursos. A somar a isto chega agora o processo de avaliação das unidades de investigações. Este processo que continua em curso é um misto de incompetência, negligência e cegueira ideológica. As unidades multiplicam as queixas sobre erros técnicos que facilmente seriam resolvidos caso as equipas de avaliação tivessem realmente especialistas das várias áreas e se estivessem preocupadas em enquadrar e discutir com os avaliados no processo de avaliação.
Mas o caso mais flagrante de cegueira é o do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL (CIES). Falo de perto porque é um centro de investigação da instituição onde tenho passado os meus últimos quatro anos de formação e onde aprendi muito do que sei sobre as transformações da sociedade portuguesa. Os avaliadores foram incompetentes ao confundirem o CIES (Centro de Investigação) com o ISCTE-IUL (Instituição de Ensino onde ele está sediado) e ao assumirem que o ISCTE-IUL faz parte da UL, fazendo com isso uma comparação entre o CIES e o ICS da UL. Mas o absurdo vai mais longe quando os avaliadores, no auge da sua arrogância, dizem ao CIES que as problemáticas das desigualdades sociais e das migrações “estão esgotadas em termos de publicações” e que o CIES tem de procurar “linhas de investigação mais inovadoras”. Como é que é possível que se faça uma avaliação baseada em preconceitos tão claros, quando as desigualdades, nas suas várias formas, se têm agravado em Portugal e na Europa e quando a emigração é um dos assuntos mais relevantes na sociedade portuguesa nos nossos dias?
O CIES lá foi penalizado por não ceder aos interesses imediatos das agendas ideológicas para a investigação. Já protestou e espero que ganhe o braço de ferro com a FCT. Mas este processo deixa marcas. O governo quer mesmo desmantelar o sistema científico nacional que tantos anos demorou a sedimentar. E fá-lo por razões ideológicas: é preciso calar quem investiga o poder; é preciso financiar quem investiga para o reforçar.