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3- Momento da contra-hegemonia: Lugares-comunistas contra as possibilidades de fascização

 

Depois de não ter concluído a tempo este escrito a três tempos, é preciso começar por reescrever e sumarizar alguns pontos das partes anteriores (aqui e aqui):

- a atual fase da disputa hegemónica centra-se no momento pós-troika;

- o pensamento dominante cavalga uma contradição acerca desse momento: nada poderá voltar a ser como dantes e tudo poderá regressar aos bons velhos tempos antes da troika;

- a ilusão pós-troika é uma peça provisória mas importante da discursividade oficial, para além dela, mesmo que se levantem outros horizontes de falsas esperanças de caráter ambivalente, o facto cru da austeridade permanente confronta-se com a possibilidade de esgotamento deste tipo de narrativas e o momento da força pode ser mais determinante do que o momento da hegemonia;

- a austeridade permanente estabelece-se como um estado de exceção permanente que se pode unir perigosamente às tecnologias e discursos do estado de exceção política;

- neste contexto, o discurso maioritário sobre a violência é enquadrado como o desenhar da ameaça de um “outro” desestabilizador e perigoso que mete em perigo todos os “esforços” das pessoas de bem;

- assim, é preciso relembrar o lugar-comum de esquerda: o discurso maioritário sobre a violência passa tanto por ligar algumas das possibilidades de resistência a esse “outro” violento como por impedir o reconhecimento das práticas governativas como violentas;

- a crise económica, o nível de violência sistémica, junto com a crise do sistema político, apresenta riscos de fascização;

- apresentar riscos de fascização não é sinónimo que dizer que existe um Salazar ao virar de cada esquina, pronto a entrar em jogo, mas reconhecer que se sentem micro-processos de fascização por baixo (as crises de grandes dimensões são terreno fértil para bodes expiatórios e populismos - os discursos genéricos e sem consequências sobre «os políticos» e «a corrupção» são disso sinal ) e por cima (o tal aumento da repressão sistémica de forma a manter a possibilidade de aplicação violência austeritária) e que a fascização é um processo multiforme e de ritmos diversos, não apenas um regime político acabado;

- o ponto aqui não é chegar à conclusão da necessária institucionalização das lutas políticas e sociais para escapar à narrativa da violência que lhe parece destinada ao menor incidente (até porque é impossível escapar da criação do inimigo violento);

- face a tudo isto a esquerda não creio que a esquerda tenha como tarefa inventar a roda mas voltar a alguns «lugares-comunistas».

 

Utilizo a terceira parte desta reflexão solta para voltar às últimas duas questões:

1- Em primeiro lugar, mais algumas palavras sobre a violência. Entretanto, os Gato Fedorento fizeram uma rábula cómica, também ela ambígua, sobre a “solução para a crise”. Cada um verá o que quiser na proposta de pagar a Steven Seagal para espancar os principais responsáveis políticos pela austeridade: de palhaçada sem sentido nenhum em particular, apenas para apanhar a onda, a criação consciente ou inconsciente de um escape para aliviar tensões (o que seria positivo do ponto de vista do sistema político) ou até a denúncia irónica do discurso da violência.

Pela minha parte, e só porque dá mais jeito para continuar a escrever isto, prefiro salientar a forma como a rábula se cruza não com o discurso dos profetas do óbvio mas com um certo senso comum “radical” que apela à violência. Deste ponto de vista, até se pode escolher: ou assumir que se trata do efeito Zé Povinho, de querer encarnar a voz do povo e dizer a verdade a brincar; ou, pelo contrário, pensar que se pode reduzir tudo a uma conservadora exposição do “ridículo”, uma desmontagem caricatural, como foi feita com o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o aborto. Na segunda alternativa, a exposição do “ridículo” poderia atrever-se a constituir uma barragem à sua proliferação doravante.

Seja qual for a intenção que lhe colemos, interessa que é outro sinal importante da extensão da questão da violência que continua a circular nos discursos de rua e de café, nos fora mais “seletos” ou nos aproveitamentos cómicos. Interessa que a questão da violência não se deixa atropelar pelo número cómico. Antes pelo contrário. E, mais do que ridicularizar ou menorizar estes discursos, convém tomá-los a sério. São sinais e têm efeitos. Claro que é preciso ter cuidado e não tomá-los literalmente pelo seu valor facial: quem desabafa e alivia tensões, provavelmente em muitos casos repudiaria os atos concretos de violência, digo eu…

Mas a sua produção e reprodução continuada fora da esfera das narrativas e contra-narrativas da crise merece atenção. Não para os repudiar de forma simplista como ecos das botas cardadas que nos esperam e também não para os saudar de forma simplista como antecipações da “revolução que vem”. Para os compreender no seu caráter contraditório porque neles se radicaliza o afastamento da política tal como tem sido feita e que se expressava no abstencionismo dos zangados platonicamente com a política.

São discursos muitas vezes despolitizados, que se enganam no alvo (os políticos em geral ou então os meros gestores nacionais da crise), que não têm pensamento estratégico nenhum para além do “banano”, que até obscurecem as respostas possíveis, que ajudam a eclipsar o debate estratégico e colocam uma ética vaga de salvação nacional onde devia existir uma política profunda. São discurso reapropriáveis para os piores dos fins, fascizáveis (por cima e por baixo repita-se). Mas a esquerda tem de se atribuir a tarefa de dialogar com a forma como a ira espontânea responde à violência social que lhe é imposta. E, parece, entre as formas televisionadas e institucionalizadas de fazer política e esta ira cavou-se um abismo que não é uma piada.

 

2- Em segundo lugar, algumas breves linhas finais sobre outras facetas da resposta contra-hegemónica, sem grandes pretensões de constituir uma estratégia estruturada, a que chamei “lugares-comunistas”. Ou seja, um exercício de reinvenção dos lugares comuns políticos que ultrapasse a sua adoção estafada e repetida.

É um lugar-comum a referência ao 25 de Abril e às suas conquistas. É fundamental, para lutar defensivamente pela manutenção de direitos garantidos pelo Estado Social e pelas liberdades fundamentais, contra os fascismos possíveis e os austeritarismos reais, reinventar Abril. Tornar Abril um lugar-comunista implica ir além da mobilização de nostalgias em direção a um processo coletivo de subjetivação: é preciso ser Abril nas formas de resistência ao austeritarismo.

A consciência de classe foi um lugar-comum da esquerda. Ultimamente desaparecida do vocabulário político corrente, é tempo de reinventá-la contra as falsas unidades nacionais. Fazer Abril é direcionar-se este processo coletivo de subjetivação para a consciência de que somos trabalhadores que se opõem ao domínio capital. Para que possamos sonhar fazer mais do que resistir.

Talvez não seja habitualmente um lugar-comum da esquerda, mas não deixa de ser urgente: contra o discurso populista e simplista acerca dos políticos “todos iguais, todos corruptos” é preciso aquilo que Daniel Bensaïd chamava o “elogio da política profana”. Fazer Abril é defender a democracia, plural, partidária. É elogiar abertamente as complexidades da política e não a simplicidade da lambada.

Daí que o lugar-comum da defesa da necessidade de organização deva também ser reinventado. É precisa organização de médio e longo prazo, a defesa dos partidos e dos sindicatos e não o apelo à salvífica irrupção de violência, o mito inorgânico que resolveria os problemas de uma cartada.

É precisa organização e esforço persistente, menos individualidades egocêntricas. É precisa mesmo mais divisão e escolhas sobre estratégias.

 

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