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1- O grande papão do sectarismo
A propósito da unidade de esquerda, tenho visto várias referências à famosa sequência dos Monty Phyton da “Frente Popular da Judeia” e dos divisionistas. Daniel Oliveira no Expresso online é um dos que a utiliza. É interessante ver que a subtileza da utilização do exemplo dos Phyton, sugerindo as mais das vezes que o sectarismo são os outros (ora o sectarismo são sempre os outros, não é?), não consegue escapar da armadilha da caricatura. Mesmo se feita em nome da unidade, acaba-se a gritar divisionista para o vizinho do lado.
Um dos pontos a analisar antes de lançar uma acusação de sectarismo é se não estaremos a afunilar as nossas propostas de unidade de tal forma que o seu timing, o arco das alianças, a sua modalidade, os seus objetivos ou meios sejam colocados de forma absolutizada: a unidade ou é assim ou não será. Esta é portanto uma das armadilhas em que convém não cair ou corre-se o risco de se acabar a sugerir que todas as outras possibilidades não são “a unidade” a sério, aquela que é precisa, e, assim, acabar a sugerir que aos outros, por mais que digam o contrário, poderá ser colocado o rótulo de sectários, divisionistas ou irresponsáveis que não têm em conta o grave momento que vivemos.
Ora, se a unidade é fundamental há que ter alguma capacidade de integração do ponto de vista alheio ou então condenaremos perpetuamente os Monty Phyton à genialidade. As formas da unidade estão, assim, também elas em debate e a vontade de unidade não é um exclusivo de ninguém. Para começar este processo, que é o contrário de o enterrar ao primeiro contratempo, nada melhor do que a consciência das dificuldades.
Dificuldades sérias. Por isso, não basta o apelo de boa vontade à unidade. Claro que a boa vontade é necessária ao processo e os apelos também. Mas é preciso não cair noutra armadilha que nos conduziria a um beco sem saída: explicar a ausência de unidade por questões de egocentrismo, por acreditar que os outros, sempre eles bolas, não aceitam a via da unidade porque querem manter a sua quinta eleitoral, os seus pequenos privilégios, as suas migalhas do sistema.
Até porque somos todos humanos, dizem, convém não diabolizar uns e santificar outros: aos maus sectários não se contrapõem os bons unitários. Não há os dos interesses e os desinteressados. E se se pode suspeitar que uns fazem o que fazem porque querem manter o tal quintal, não se pode achar estranho que os outros rebatam que o discurso da unidade também poderá servir interesses pequenos como construir um pequeno espaço político próprio ou substituir as direções de um espaço político já existente.
Retóricas e interesses à parte, creio que é preciso afirmar que o problema central da inexistência de políticas de unidade à esquerda são os programas diferentes, os métodos políticos diferentes e os objetivos diferentes. E menorizar as diferenças em nome da angustiante urgência de alterar o rumo político do país não tem contribuído em nada para resolver a questão. É preciso, pois, partir do facto das diferenças vincadas e discuti-las aberta e aprofundadamente. Ter a capacidade de o fazer será dar uma alfinetada no grande papão a ver se o esvaziamos ao contrário de continuar a insuflá-lo de muitas maneiras.
2- Um pequeno papão para assustar o PS
O referido artigo do Daniel Oliveira é interessante porque procura responder a estas questões enquadrando a política unitária dentro de certos limites. Pode-se dizer que apresenta:
- um meio: a unidade é um partido (ou uma força sobretudo eleitoral);
- uma estratégia: a unidade é para conquistar eleitorado do PS assustando a sua direção;
- um objetivo: a unidade conduz a um governo de esquerda. Tenho para mim, precisamente, que cada um destes pontos é tudo menos evidente.
1- O meio “partido” e a intervenção eleitoral não são o único conteúdo possível da unidade de esquerda. Só assim será se acreditarmos exclusivamente na narrativa de que o que falta é uma força eleitoral que assuste o PS. Ora, de outro ponto de vista, pode-se contrapor que a unidade mais urgente é da mobilização e da luta social. Só ela pode contrapor aos poderes perenes do austeritarismo sendo assim uma força suficiente para meter medo não ao PS mas aos verdadeiros donos do país. Aliás, não haveria «governo de esquerda» capaz de aguentar as pressões a que seria sujeito sem essa força social mobilizada em permanência, sem a frente unida social.
2- A estratégia de entrar pelo eleitorado do PS dentro não deve ser absolutizada como a única possível desde um ponto de vista de esquerda. De um outro ponto de vista, a política de esquerda deve também dirigir-se aos «zangados da política», ou seja, todos/as os/as que dela são excluídos. A batalha contra-hegemónica nas camadas da população mais afetadas pela crise e mais sujeitas aos processos de despolitização é central e supõe metodologias, discursos e práticas diferentes.
3- O objetivo final da unidade não tem necessariamente de ser a participação de um partido num governo com o PS. A indisponibilidade do PS para tal ou a sua persistência no social-liberalismo são bastantes para inviabilizar tal projeto. Aliás, mantendo-nos no campo das possibilidades mais «moderadas», poderíamos colocar a hipótese de ser bem mais profícua a existência de uma esquerda parlamentar que se comprometa a viabilizar as propostas anti-austeridade e a contrariar as outras. Isto para não falarmos de tantas outras possibilidades de unidade que não estarão destinadas a limitar-se à política partidária e institucional porque vencer a austeridade não se pode limitar a ser só governar.
Parte da esquerda é influenciada por um fetichismo da governamentalidade como tentativa de contrariar uma suposta aversão juvenil ao poder (ou seja, como forma de contrariar um preconceito conservador). Não me parece que contrapor a vontade de governo a isto seja a melhor das obsessões para quem sabe que precisa de trabalhar muito para inverter a hegemonia do pensamento capitalista. Nem se passa a ser respeitável e credível face a um eleitorado só por se ter como projeto ser governo.
Para além do mais, um governo de esquerda, encontradas que sejam as pontes possíveis, teria de se confrontar com o paradoxo em que vivem as políticas sociais-democratas e de Estado de Bem-Estar nos tempos que correm: um governo minimamente de esquerda nesta correlação de forças é um desafio máximo à arquitetura da UE e do euro, uma afronta máxima à burguesia financeira internacional e aos donos do país que enriquecem com a crise.
Tal projeto de governo teria de responder à cabeça a questões bem espinhosas sobre dívidas, financiamentos, moeda, políticas de fundo, etc. As questões mais fraturantes.
Assim, junto com a conclusão de que um governo deste género seria um governo de combate social e de crise contra a crise, é preciso avançar outra: é impossível uma unidade mínima de esquerda com uma coligação com um partido de natureza social-liberal (será este o meu momento sectário?). E esperar que um partido mude de natureza só porque se espera vir a entrar-lhe pelo eleitorado como se este estivesse preso numa posição política imutável é um projeto mais que discutível e não será o único ponto de ancoragem possível de uma estratégia de unidade.
Um pequeno papão eleitoral, temo, não assustará ninguém e parece impotente para tantas tarefas que temos pela frente. O que assusta a burguesia que temos de vencer é a esperança e a consciência de classe dos/as trabalhadores/as. E o raio da unidade de esquerda que continua a ser urgente.