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São José Almeida, no Público, propõe a sua justificação para o fracasso de uma coligação de esquerda nas europeias.
Haverá alguns pormaiores para descontar no seu texto antes de entrar na questão que interessa aqui.
Todo o artigo é construído à volta da ideia da «herança de Cunhal» e do «modelo organizativo político que tem como referência em Portugal o PCP, que passa pelo funcionamento de acordo com as regras do centralismo democrático ou próximas dele, e que vive da ideia de se constituir em partido de vanguarda revolucionária que conduzirá à emancipação libertadora do povo, os trabalhadores, os operários, consoante o léxico nas diferentes épocas.»
Ao definir-se assim a temática, escolhe-se a simplificação extrema: não se diferenciam práticas ou tradições organizativas no interior dos partidos da esquerda anticapitalista; reduz-se o todo a uma qualquer variação mínima de um cunhalismo (sem especificar se existe um modelo de partido propriamente cunhalista); não se enquadra minimanente em termos históricos a tradição leninista. Todos diferentes, estes partidos seriam, no fundo, todos iguais.
Clarifique-se que a acusação tem um alvo particular. O texto é, sobretudo, dirigido ao Bloco de Esquerda que seria culpado de viver ainda na galáxia cunhalista (e por isso ser incapaz de uma política de alianças não sectária).
O processo de intenções de descobrir um leninismo vanguardista escondido na política bloquista é, diga-se, recorrente nas análises sobre o BE. Desde a sua fundação que se escrutinaram minuciosamente textos e práticas na ânsia de encontrar discrepâncias entre uma suposta agenda pós-moderna e um protoleninismo. Ao menor caso, declaração desastrada de um dirigente ou erro político imaginado ou clamoroso, sempre houve alguém disposto a desvelar a sua causa profunda num perigoso estalinismo emperdernido por sob aquela brilhante camada de verniz cosmopolita e mediático.
O problema deste artigo passa também por pressupor intenções «vanguardistas» sem sequer se dedicar à tarefa de mostrar as fontes de onde deriva a conclusão. Bastaria levantar a suspeita sobre os partidos fundadores do Bloco e pouco mais. Ora, o BE tem um determinado tipo de funcionamento mas não tem uma teoria de partido consensualizada (e digo-o não como se isso fosse uma virtude).
Tampouco o artigo procura (talvez seja pedir-lhe demais para os seus propósitos e dimensão) justificar a existência dessas intenções «vanguardistas» através do funcionamento interno do partido. E, também aqui, não escrevo para justificar o Bloco: há que reconhecer problemas organizativos, tentar encontrar soluções, mudar. E há que identificar causas: estes problemas decorrem mais das estratificações em que incorrem as organizações tradicionais, da divisão tradicional do trabalho nas sociedades em que vivemos, dos perigos do centralismo político, da mediatização e da institucionalização entre outros fatores do que de um leninismo bloquista.
A tese de São José Almeida não se interessa pela história, pelos escritos ou pelas práticas desse vanguardismo (bloquista ou comunista). Faz uma psicanálise selvagem dos dirigentes políticos da esquerda que «mesmo que não o assumam e até nem disso tenham consciência» estarão condenados a determinado ponto de visto e um exercício de idealização que liga a questão organizativa e a política de alianças a um ideal de vanguardismo revolucionário utópico que guiaria estes partidos que se veriam como messias a guiar o rebanho.
Desconte-se, já agora, outro pormaior a este respeito: uma aceção confusa de frentismo. Escreve Almeida que «o vanguardismo político próprio das forças que bebem no modelo de acção política leninista concretizou-se historicamente no chamado "frentismo político", através de movimentos unitários de Frente Popular.» O que a autora chama de frentismo é a ideia de que a aliança política é a subjugação ao partido guia. Descontam-se assim as minudências da história: para falar na política de alianças comunista seria preciso ir à história do movimento comunista internacional para perceber diferentes formas de frentismo, das frentes populares de governo com o PS às teorias da social-democracia enquanto social-fascismo etc., para tomar o PCP como modelo de frentismo seria preciso situar as suas várias atitudes políticas antes e depois do 25 de Abril etc.
As conclusões do artigo serão relativamente desinteressantes para pensar a esquerda anticapitalista: que é impossível «organizar movimentos democráticos e transversais hoje em dia com forças que persistem em considerar-se como vanguardas e se vêem como as detentoras da via correcta e da verdadeira linha justa para a condução das massas» e a redução (outra vez idealista) ao binarismo entre o utopismo vanguardista a que responde o pragmatismo bom.
Mas sublinhe-se que, por debaixo de algumas formulações desinteressantes, São José Almeida levanta um problema político profundamente interessante: como, nos dias que correm, organizar um partido (anticapitalista) o mais democrático possível não só enquanto instrumento de emancipação sonhada no futuro mas como ferramente de democratização permanente no presente; como construir um partido que não cave um fosso abissal entre «massas para conduzir» e «vanguarda política».
O ângulo de abordagem de Almeida parece não se dirigir tanto ao fosso dirigentes/dirigidos/as. Apesar de afirmar que a «vanguarda política surge desfasada na era da comunicação de massas» não equaciona aqui, por exemplo, o problema inverso nos partidos do sistema que se foram transformando de partidos de massas no período pós-revolucionário em partidos de espectadores que encenam consecutivamente a salvação da pátria a partir do rotatitivismo co-substanciado numa liderança unipessoal redentora.
Bem mais interessante do que as declarações de óbito do pensamento leninista é que continue, num contexto radicalmente diferente, a haver tudo por discutir sobre questões tradicionais como o que é um partido e como se deve organizar, se faz sentido essa ideia da vanguarda (ou o queria dizer quando tal foi escrito), o que é isso da consciência política e social e, sobretudo, como é possível resistir à barbárie.
Percebemos que há muita a coisa a mudar na esquerda, quando vemos a Constança Cunha e Sá a desmistificar mitos da unidade à esquerda e a dizer que só um louco de esquerda se sentaria para negociar com António José Seguro, quando vemos Herique Raposo a dizer que o Bloco acabar é mau para a democracia porque o PS fica sem o possível parceiro de negociatas e o João Miguel Tavares e a insurgir-se contra Daniel Oliveira e a sua tese de que é preciso um novo partido depois das europeias que meta medo e asute o PS para este ser obrigado a mudar de política.
Na unidade de esquerda, nem a direita se entende.
Sou da opinião que nestes tempos de barbárie, a esquerda que quer ser esquerda não deve ambicionar menos do que vencer. Juntar milhares de pessoas em torno de ideias, de um programa e de um movimento popular permanente que sustente uma mudança estrutural na relação de forças em Portugal e na Europa. E para isso a disponibilidade para discussões em torno do que une e do que agrega e em torno de uma unidade que sustente uma verdadeira alternativa política é indispensável.
Há neste aspecto uma proposta do Bloco e do PCP de construção das bases para um Governo de Esquerda que tire Portugal da tirania financeira. Há um PS que pelo que defende e tem aplicado não conta nesta equação. Há uma proposta vaga e populista do LIVRE para unir a esquerda sem um programa de esquerda. E há agora o Manifesto 3D.
Não acho que o Manifesto 3D se possa resumir aos seus proponentes. Ele é o espelho de um sentimento que vai ganhando peso na sociedade portuguesa para mudar este estado de coisas. E gosto de muitas das pessoas que propõe o movimento e de muitas das quais o subscreveram. Muitas dessas pessoas sei que são pessoas honestas, com bons princípios e verdadeiramente empenhadas numa mudança de Portugal e da Europa à Esquerda.
Não acho pois que devam de nenhum modo ser hostilizadas. Até porque propõe o mais razoável: uma unidade na que consiga “recusar a submissão passiva de Portugal a uma União Europeia transformada em troika permanente”.
E se acho que a política se faz em torno do programa este manifesto propõe uma linha política clara no seu texto:
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Nove pontos razoáveis. Mas que por princípio tipificam essencialmente aquilo em que estamos contra. Estamos contra esta União Europeia, a austeridade, o memorando e os resgates (com este ou outro nome), a usurpação do sistema democrático pelo sistema financeiro, as desigualdades e injustiças sociais e económicas e a defesa do Estado Social. É por estarmos contra isso que defendemos o oposto: devolver dignidade ao trabalho, afirmar o carácter público dos sectores estratégicos, erradicar a pobreza, proceder a uma renegociação da dívida.
Mas para juntar e para vencer nestas europeias sabemos que não chega. Há pelo menos quatro pontos fundamentais que o movimento 3D e quem nas suas ideias se sente representado deve responder. Dessas respostas depende a sua vitória. E provavelmente a mudança da relação de forças em Portugal.
Se estivermos de acordo nisto, então acho que temos caminho para fazer em conjunto. Na verdade, construir uma maioria ganhadora em torno deste programa seria provavelmente a mudança mais decisiva na luta dos povos e na luta de classes das últimas décadas.
Não devemos fechar as portas a essa oportunidade.