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"Assim como a orientação denominal de um homem é o resultado de sua educação, e o religioso precisa de um retiro para sua alma, a opinião pública das massas representa nada mais que o resultado final de uma incrível tenacidade e perfeita manipulação de de sua mente e alma"
André Freire é mais um dos cronistas que se junta à torrente de opinadores sobre a «desunião das esquerdas». A sua explicação parte da ideia de que o problema são as «elites desavindas» da «esquerda radical» que acabam por excluir do «sistema de tomada de decisão» os eleitores que «preferem claramente a unidade» como «demonstram sucessivos estudos ao longo do tempo».
O problema com esta teoria, para além de homogeneizar um campo político (o eleitorado do PCP é igual ao do BE ou de outros partidos?), é que a crítica a tal elitismo acaba por dar um retrato um pouco elitista das massas votantes que não exigiriam mais que uma vaga unidade e a redentora governamentabilidade, ambas sem políticas e sem conteúdos. Essas massas votariam consistentemente numa «esquerda radical» mas no fundo desejariam apenas que ela acabasse por ceder ao social-liberalismo.
A insistência na predisposição do eleitorado por uma aliança que incluiria necessariamente o PS acaba por ser um remake da teoria de que há um espaço político à esquerda do PS pronto a ser ocupado por quem se mostre mais ponderado que estas «elites radicais». O que torna curioso que, os cenários apresentados para uma possível solução para o beco sem saída desta desunião que aproveitariam mais diretamente este espaço (a vitória eleitoral de um «partido do entendimento» ou a cisão de esquerda no PS) se apresentam como quase impossíveis apostando-se noutro: a «reforma do sistema eleitoral que premiasse os partidos que cooperam para a formação dos governos». Dito de outra forma: reduzir a proporcionalidade, afunilar as possibilidades de eleição de pequenos partidos, criando um sistema à alemã ou francesa «um sistema misto (...), mas com duas voltas na componente uninominal». Quanto a isto creio que é preciso ser claro e escapar aos eufemismos: não se trata de «premiar» a cooperação mas de limitar possibilidades. Mas será que isso não é o caminho mais rápido para reforçar o binarismo das alternância sem alternativa? E convém também acrescentar a pergunta: nos países que se parece ter como modelos (França e Alemanha) o sistema eleitoral é mais justo? Foi por causa deste sistema que existiram as malogradas experiências de governo com verdes e PCF? Estas julgam-se agora como um sucesso?
Curioso é também que, apesar de se lançar o ónus do problema para cima dessas elites desavindas da esquerda radical, não deixa de se constatar o óbvio: «o PS também não ajuda para a concretização de alianças à esquerda (...) porque sempre foi um dos partidos mais centristas da família socialista europeia» e «porque, apesar da devastação criada pelo Governo mais neoliberal de sempre em termos de desinvestimento na escola pública, de estrangulamento financeiro das universidades públicas, de desinvestimento e favorecimento na ciência, de dificultação do acesso à saúde, de cortes nas prestações sociais e nas remunerações de servidores públicos e reformados, etc., a preferência de alianças no PS continua a ser com a direita.» Só que, apesar de tudo isto, no momento de desbloquear o impasse à elite política social-liberal incrustada no carreirismo e submersa nos interesses dominantes não se exige nada. Cabe juntar mais questões: não sairia esta outra elite bem mais elitista claramente reforçada de uma reforma eleitoral que introduzisse círculos uninominais? Para que precisaria ela da esquerda se a pressão do voto útil num sistema a dois turnos como é proposto lhe é mais do que favorável?
Como já referi alhures, se parte da chave da questão da unidade está na discussão política e na questão do programa, outra parte não menos importante está na avaliação da natureza do social-liberalismo. Há várias hipóteses de leitura da situação que se agarram desesperadamente à ideia de que o oportunismo do Partido Socialista é uma oportunidade para os partidos à sua esquerda, ou seja, que se ameaçado e perante a escolha entre perder eleitorado fortemente para a sua esquerda e aliar-se governativamente a esta mesma esquerda o PS escolheria (por mero pragmatismo) a segunda alternativa e o que redundaria (?) numa governação à esquerda.
Creio que é um exercício especulativo ilusório e que ignora as diferenças entre a velha social-democracia reformista e osocial-liberalismo realmente existente desde a «terceira via». É também pôr de lado ostensivamente os vínculos que ligam esta opção ao donos do país, da Europa neoliberalizante e das finanças mundiais.
Para além do mais, os tempos excepcionais em que vivemos tendem a colocar-nos perante escolhas difíceis como as de memorandos, resgastes, austeridades light, submissão à finança internacional. E uma esquerda que abdicasse do que é para se manter à tona de um sistema eleitoral adverso afogar-se-ia nesse pântano social-liberal.
Tal como vários outros autores, existe no artigo de Freire um eclipse da estratégia, uma obliteração das políticas que realmente contam. Aqui este vazio é preenchido por outras contas que parecem de merceeiro: há 20% para se arrastar de A para B, de uma oposição supostamente estéril para uma governabilidade supostamente construtiva. Como se o eleitorado fosse fixo. Mas a perspetiva de André Freire também nos pode fazer pensar noutro cenário: tendo o mérito de nos relembrar quão politicamente relevante para os resultados é o sistema eleitoral sublinha a artificialidade da construção e pode mesmo sugerir que o caminho contrário ao proposto, um reforço forte da proporcionalidade, poderia ser um terramoto político...
1- O grande papão do sectarismo
A propósito da unidade de esquerda, tenho visto várias referências à famosa sequência dos Monty Phyton da “Frente Popular da Judeia” e dos divisionistas. Daniel Oliveira no Expresso online é um dos que a utiliza. É interessante ver que a subtileza da utilização do exemplo dos Phyton, sugerindo as mais das vezes que o sectarismo são os outros (ora o sectarismo são sempre os outros, não é?), não consegue escapar da armadilha da caricatura. Mesmo se feita em nome da unidade, acaba-se a gritar divisionista para o vizinho do lado.
Um dos pontos a analisar antes de lançar uma acusação de sectarismo é se não estaremos a afunilar as nossas propostas de unidade de tal forma que o seu timing, o arco das alianças, a sua modalidade, os seus objetivos ou meios sejam colocados de forma absolutizada: a unidade ou é assim ou não será. Esta é portanto uma das armadilhas em que convém não cair ou corre-se o risco de se acabar a sugerir que todas as outras possibilidades não são “a unidade” a sério, aquela que é precisa, e, assim, acabar a sugerir que aos outros, por mais que digam o contrário, poderá ser colocado o rótulo de sectários, divisionistas ou irresponsáveis que não têm em conta o grave momento que vivemos.
Ora, se a unidade é fundamental há que ter alguma capacidade de integração do ponto de vista alheio ou então condenaremos perpetuamente os Monty Phyton à genialidade. As formas da unidade estão, assim, também elas em debate e a vontade de unidade não é um exclusivo de ninguém. Para começar este processo, que é o contrário de o enterrar ao primeiro contratempo, nada melhor do que a consciência das dificuldades.
Dificuldades sérias. Por isso, não basta o apelo de boa vontade à unidade. Claro que a boa vontade é necessária ao processo e os apelos também. Mas é preciso não cair noutra armadilha que nos conduziria a um beco sem saída: explicar a ausência de unidade por questões de egocentrismo, por acreditar que os outros, sempre eles bolas, não aceitam a via da unidade porque querem manter a sua quinta eleitoral, os seus pequenos privilégios, as suas migalhas do sistema.
Até porque somos todos humanos, dizem, convém não diabolizar uns e santificar outros: aos maus sectários não se contrapõem os bons unitários. Não há os dos interesses e os desinteressados. E se se pode suspeitar que uns fazem o que fazem porque querem manter o tal quintal, não se pode achar estranho que os outros rebatam que o discurso da unidade também poderá servir interesses pequenos como construir um pequeno espaço político próprio ou substituir as direções de um espaço político já existente.
Retóricas e interesses à parte, creio que é preciso afirmar que o problema central da inexistência de políticas de unidade à esquerda são os programas diferentes, os métodos políticos diferentes e os objetivos diferentes. E menorizar as diferenças em nome da angustiante urgência de alterar o rumo político do país não tem contribuído em nada para resolver a questão. É preciso, pois, partir do facto das diferenças vincadas e discuti-las aberta e aprofundadamente. Ter a capacidade de o fazer será dar uma alfinetada no grande papão a ver se o esvaziamos ao contrário de continuar a insuflá-lo de muitas maneiras.
2- Um pequeno papão para assustar o PS
O referido artigo do Daniel Oliveira é interessante porque procura responder a estas questões enquadrando a política unitária dentro de certos limites. Pode-se dizer que apresenta:
- um meio: a unidade é um partido (ou uma força sobretudo eleitoral);
- uma estratégia: a unidade é para conquistar eleitorado do PS assustando a sua direção;
- um objetivo: a unidade conduz a um governo de esquerda. Tenho para mim, precisamente, que cada um destes pontos é tudo menos evidente.
1- O meio “partido” e a intervenção eleitoral não são o único conteúdo possível da unidade de esquerda. Só assim será se acreditarmos exclusivamente na narrativa de que o que falta é uma força eleitoral que assuste o PS. Ora, de outro ponto de vista, pode-se contrapor que a unidade mais urgente é da mobilização e da luta social. Só ela pode contrapor aos poderes perenes do austeritarismo sendo assim uma força suficiente para meter medo não ao PS mas aos verdadeiros donos do país. Aliás, não haveria «governo de esquerda» capaz de aguentar as pressões a que seria sujeito sem essa força social mobilizada em permanência, sem a frente unida social.
2- A estratégia de entrar pelo eleitorado do PS dentro não deve ser absolutizada como a única possível desde um ponto de vista de esquerda. De um outro ponto de vista, a política de esquerda deve também dirigir-se aos «zangados da política», ou seja, todos/as os/as que dela são excluídos. A batalha contra-hegemónica nas camadas da população mais afetadas pela crise e mais sujeitas aos processos de despolitização é central e supõe metodologias, discursos e práticas diferentes.
3- O objetivo final da unidade não tem necessariamente de ser a participação de um partido num governo com o PS. A indisponibilidade do PS para tal ou a sua persistência no social-liberalismo são bastantes para inviabilizar tal projeto. Aliás, mantendo-nos no campo das possibilidades mais «moderadas», poderíamos colocar a hipótese de ser bem mais profícua a existência de uma esquerda parlamentar que se comprometa a viabilizar as propostas anti-austeridade e a contrariar as outras. Isto para não falarmos de tantas outras possibilidades de unidade que não estarão destinadas a limitar-se à política partidária e institucional porque vencer a austeridade não se pode limitar a ser só governar.
Parte da esquerda é influenciada por um fetichismo da governamentalidade como tentativa de contrariar uma suposta aversão juvenil ao poder (ou seja, como forma de contrariar um preconceito conservador). Não me parece que contrapor a vontade de governo a isto seja a melhor das obsessões para quem sabe que precisa de trabalhar muito para inverter a hegemonia do pensamento capitalista. Nem se passa a ser respeitável e credível face a um eleitorado só por se ter como projeto ser governo.
Para além do mais, um governo de esquerda, encontradas que sejam as pontes possíveis, teria de se confrontar com o paradoxo em que vivem as políticas sociais-democratas e de Estado de Bem-Estar nos tempos que correm: um governo minimamente de esquerda nesta correlação de forças é um desafio máximo à arquitetura da UE e do euro, uma afronta máxima à burguesia financeira internacional e aos donos do país que enriquecem com a crise.
Tal projeto de governo teria de responder à cabeça a questões bem espinhosas sobre dívidas, financiamentos, moeda, políticas de fundo, etc. As questões mais fraturantes.
Assim, junto com a conclusão de que um governo deste género seria um governo de combate social e de crise contra a crise, é preciso avançar outra: é impossível uma unidade mínima de esquerda com uma coligação com um partido de natureza social-liberal (será este o meu momento sectário?). E esperar que um partido mude de natureza só porque se espera vir a entrar-lhe pelo eleitorado como se este estivesse preso numa posição política imutável é um projeto mais que discutível e não será o único ponto de ancoragem possível de uma estratégia de unidade.
Um pequeno papão eleitoral, temo, não assustará ninguém e parece impotente para tantas tarefas que temos pela frente. O que assusta a burguesia que temos de vencer é a esperança e a consciência de classe dos/as trabalhadores/as. E o raio da unidade de esquerda que continua a ser urgente.
3- Momento da contra-hegemonia: Lugares-comunistas contra as possibilidades de fascização
Depois de não ter concluído a tempo este escrito a três tempos, é preciso começar por reescrever e sumarizar alguns pontos das partes anteriores (aqui e aqui):
- a atual fase da disputa hegemónica centra-se no momento pós-troika;
- o pensamento dominante cavalga uma contradição acerca desse momento: nada poderá voltar a ser como dantes e tudo poderá regressar aos bons velhos tempos antes da troika;
- a ilusão pós-troika é uma peça provisória mas importante da discursividade oficial, para além dela, mesmo que se levantem outros horizontes de falsas esperanças de caráter ambivalente, o facto cru da austeridade permanente confronta-se com a possibilidade de esgotamento deste tipo de narrativas e o momento da força pode ser mais determinante do que o momento da hegemonia;
- a austeridade permanente estabelece-se como um estado de exceção permanente que se pode unir perigosamente às tecnologias e discursos do estado de exceção política;
- neste contexto, o discurso maioritário sobre a violência é enquadrado como o desenhar da ameaça de um “outro” desestabilizador e perigoso que mete em perigo todos os “esforços” das pessoas de bem;
- assim, é preciso relembrar o lugar-comum de esquerda: o discurso maioritário sobre a violência passa tanto por ligar algumas das possibilidades de resistência a esse “outro” violento como por impedir o reconhecimento das práticas governativas como violentas;
- a crise económica, o nível de violência sistémica, junto com a crise do sistema político, apresenta riscos de fascização;
- apresentar riscos de fascização não é sinónimo que dizer que existe um Salazar ao virar de cada esquina, pronto a entrar em jogo, mas reconhecer que se sentem micro-processos de fascização por baixo (as crises de grandes dimensões são terreno fértil para bodes expiatórios e populismos - os discursos genéricos e sem consequências sobre «os políticos» e «a corrupção» são disso sinal ) e por cima (o tal aumento da repressão sistémica de forma a manter a possibilidade de aplicação violência austeritária) e que a fascização é um processo multiforme e de ritmos diversos, não apenas um regime político acabado;
- o ponto aqui não é chegar à conclusão da necessária institucionalização das lutas políticas e sociais para escapar à narrativa da violência que lhe parece destinada ao menor incidente (até porque é impossível escapar da criação do inimigo violento);
- face a tudo isto a esquerda não creio que a esquerda tenha como tarefa inventar a roda mas voltar a alguns «lugares-comunistas».
Utilizo a terceira parte desta reflexão solta para voltar às últimas duas questões:
1- Em primeiro lugar, mais algumas palavras sobre a violência. Entretanto, os Gato Fedorento fizeram uma rábula cómica, também ela ambígua, sobre a “solução para a crise”. Cada um verá o que quiser na proposta de pagar a Steven Seagal para espancar os principais responsáveis políticos pela austeridade: de palhaçada sem sentido nenhum em particular, apenas para apanhar a onda, a criação consciente ou inconsciente de um escape para aliviar tensões (o que seria positivo do ponto de vista do sistema político) ou até a denúncia irónica do discurso da violência.
Pela minha parte, e só porque dá mais jeito para continuar a escrever isto, prefiro salientar a forma como a rábula se cruza não com o discurso dos profetas do óbvio mas com um certo senso comum “radical” que apela à violência. Deste ponto de vista, até se pode escolher: ou assumir que se trata do efeito Zé Povinho, de querer encarnar a voz do povo e dizer a verdade a brincar; ou, pelo contrário, pensar que se pode reduzir tudo a uma conservadora exposição do “ridículo”, uma desmontagem caricatural, como foi feita com o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o aborto. Na segunda alternativa, a exposição do “ridículo” poderia atrever-se a constituir uma barragem à sua proliferação doravante.
Seja qual for a intenção que lhe colemos, interessa que é outro sinal importante da extensão da questão da violência que continua a circular nos discursos de rua e de café, nos fora mais “seletos” ou nos aproveitamentos cómicos. Interessa que a questão da violência não se deixa atropelar pelo número cómico. Antes pelo contrário. E, mais do que ridicularizar ou menorizar estes discursos, convém tomá-los a sério. São sinais e têm efeitos. Claro que é preciso ter cuidado e não tomá-los literalmente pelo seu valor facial: quem desabafa e alivia tensões, provavelmente em muitos casos repudiaria os atos concretos de violência, digo eu…
Mas a sua produção e reprodução continuada fora da esfera das narrativas e contra-narrativas da crise merece atenção. Não para os repudiar de forma simplista como ecos das botas cardadas que nos esperam e também não para os saudar de forma simplista como antecipações da “revolução que vem”. Para os compreender no seu caráter contraditório porque neles se radicaliza o afastamento da política tal como tem sido feita e que se expressava no abstencionismo dos zangados platonicamente com a política.
São discursos muitas vezes despolitizados, que se enganam no alvo (os políticos em geral ou então os meros gestores nacionais da crise), que não têm pensamento estratégico nenhum para além do “banano”, que até obscurecem as respostas possíveis, que ajudam a eclipsar o debate estratégico e colocam uma ética vaga de salvação nacional onde devia existir uma política profunda. São discurso reapropriáveis para os piores dos fins, fascizáveis (por cima e por baixo repita-se). Mas a esquerda tem de se atribuir a tarefa de dialogar com a forma como a ira espontânea responde à violência social que lhe é imposta. E, parece, entre as formas televisionadas e institucionalizadas de fazer política e esta ira cavou-se um abismo que não é uma piada.
2- Em segundo lugar, algumas breves linhas finais sobre outras facetas da resposta contra-hegemónica, sem grandes pretensões de constituir uma estratégia estruturada, a que chamei “lugares-comunistas”. Ou seja, um exercício de reinvenção dos lugares comuns políticos que ultrapasse a sua adoção estafada e repetida.
É um lugar-comum a referência ao 25 de Abril e às suas conquistas. É fundamental, para lutar defensivamente pela manutenção de direitos garantidos pelo Estado Social e pelas liberdades fundamentais, contra os fascismos possíveis e os austeritarismos reais, reinventar Abril. Tornar Abril um lugar-comunista implica ir além da mobilização de nostalgias em direção a um processo coletivo de subjetivação: é preciso ser Abril nas formas de resistência ao austeritarismo.
A consciência de classe foi um lugar-comum da esquerda. Ultimamente desaparecida do vocabulário político corrente, é tempo de reinventá-la contra as falsas unidades nacionais. Fazer Abril é direcionar-se este processo coletivo de subjetivação para a consciência de que somos trabalhadores que se opõem ao domínio capital. Para que possamos sonhar fazer mais do que resistir.
Talvez não seja habitualmente um lugar-comum da esquerda, mas não deixa de ser urgente: contra o discurso populista e simplista acerca dos políticos “todos iguais, todos corruptos” é preciso aquilo que Daniel Bensaïd chamava o “elogio da política profana”. Fazer Abril é defender a democracia, plural, partidária. É elogiar abertamente as complexidades da política e não a simplicidade da lambada.
Daí que o lugar-comum da defesa da necessidade de organização deva também ser reinventado. É precisa organização de médio e longo prazo, a defesa dos partidos e dos sindicatos e não o apelo à salvífica irrupção de violência, o mito inorgânico que resolveria os problemas de uma cartada.
É precisa organização e esforço persistente, menos individualidades egocêntricas. É precisa mesmo mais divisão e escolhas sobre estratégias.
2- Momento da força num lugar-comum: violência é a austeridade.
O campo da austeridade necessitará em breve de outras narrativas para continuar o seu caminho de quebra do “contrato social”, ou seja do equilíbrio de forças relativamente estabilizado na Europa ocidental. A ilusão pós-troika é apenas um capítulo do estado de exceção permanente austeritário.
Só que a justificação ambivalente da exceção talvez permaneça, uma vez que está inscrita na própria forma do que é o “estado de exceção”: um momento em que a lei está em vigor e suspensa ou melhor está suspensa para supostamente se cumprir o seu suposto espírito que estaria ameaçado. Aliás, enquanto discurso de poder, a resposta austeritária à crise vem na sequência do discurso securitário do pós-11 de Setembro e da “guerra ao terrorismo” que se impuseram como estado de exceção permanente propondo a suspensão permanente de direitos cívicos e de garantias democráticas em nome da democracia. Da mesma forma, há agora uma suspensão de direitos sociais básicos que se eterniza para os garantir através da sua anulação. E o encontro entre estado de exceção político e estado de exceção social pode criar técnicas e tecnologias de poder terríveis.
É no contexto de um empobrecimento permanente e de um aumento ineludível das desigualdades sociais que a questão da violência entra em campo. Já estava muito presente nas conversas informais, entrou agora no discurso político mediático.
Nesta sua encarnação mediática, a violência não é uma tática de luta política nem um sonho de vingança simbólica. É uma ameaça que paira sobre a sociedade, que se reconhece como quase inevitável e que se deve prevenir. Descontados alguns lapsos, falar desta forma sobre violência não é legitimá-la mas constituir-se como o profeta que lança um aviso: “mudem de políticas ou a violência surgirá…”. Tão sábio quanto benevolente, o profeta lança este aviso dirigido aos seus pares ao mesmo tempo que refere esse “outro” social enquanto agente disponível para a violência. Esperto, procura fazer malabarismo com o medo da turba para benefício da sua agenda de resistência.
Só que se a próxima encarnação mediática da violência for perante qualquer caso concreto, este discurso dos profetas do óbvio não resistirá e talvez se revele “responsavelmente” temperado para se proteger da acusação de apologia da violência. Perante qualquer ato de violência originado na fome e no desespero serão os discursos papões para assustar “classes médias” que ocuparão todo o espaço público. Diz que o medo não é progressista e que o outro violento somos nós…
As núpcias entre estado de exceção social e estado de exceção política, a violência preventiva e repressiva para defender os cidadãos de bem, carregam em si possibilidades de novos fascismos. Como, aliás, também as odes apolíticas à violência contra os “políticos”, esses corruptos. Será preciso responder-lhes antecipando. Assim como é urgente responder sempre que a violência já é o quotidiano que nos foi imposto. Lugar-comum, claro. Mas um tempo de estado de exceção pode ser o tempo da coragem de voltar aos lugares comuns, de fazer um comunismo dos lugares comuns. Porque os lugares-comunistas podem ser uma arma.
A crise que atravessamos é a pior crise da nossa história recente e a que tem tido uma resposta mais autoritária e ultraliberal. A destruição das conquistas históricas do movimento popular, dos trabalhadores e do povo coloca-nos dois problemas fundamentais: o de como resistimos e bloqueamos o ataque; e o de como atacamos, e preparamos uma alternativa para disputar a maioria, tomar e transformar o poder.
É sobre essa duas dimensões – a da resistência e a da alternativa – que importa ir ao combate. Se, como toda a esquerda reconhece, este é o maior ataque às conquistas populares de que temos memória deste o 25 de Abril, qual será a nossa missão histórica? Deixar a burguesia aprofundar o processo de exploração até não haver mais quem consuma os seus produtos, o sistema entre em colapso e o povo realmente perceba as virtudes do socialismo, do poder popular e da democracia directa? Ou devemos construir a resistência mais ampla de sempre à destruição dos serviços públicos, da constituição e dos direitos sociais que, no imediato, permitem bloquear o ataque da direita e fazer cair parte do seu programa ideológico?
É nesse prisma que nos devemos colocar. No prisma de quem sabe que resistir agora para não deixar que os trabalhadores e o povo percam os direitos que conquistaram é o melhor caminho para mudar a relação de forças e contra-atacar. Isso implica juntar na resistência quem terá muitas divergências sobre o projecto político futuro. É a vida. Nenhuma revolução ou processo de luta de massas se fez sem pessoas com ideias muito diferentes de como organizar a sociedade, a política e a economia a seguir à destruição das antigas formas de poder.
Coloco isto desta forma, meramente para dizer o seguinte: o que se passou na Aula Magna na passada quinta-feira não foi uma evidente demonstração da rendição da “esquerda institucional” à social-democracia decadente, como têm anunciado algumas pessoas nos mais diversos quintais. Bem pelo contrário. Se há forma mais dialéctica de preparar condições para a disputa de massas, é perceber em cada momento que relações de força pode ajudar a trazer mais gente para os combates fundamentais que agregam.
O que vi na Aula Magna não foi a “esquerda institucional” rendida. Foram centenas de pessoas do mais diversos espaços de activismo e militância a afirmar que a defesa da Constituição, do Estado Social e da Democracia não são para amanhã, são para agora. Porque eles ainda são o que hoje nos permite resistir à brutal ofensiva do capital sobre o trabalho que vivemos tão nitidamente.
E mesmo que na sala houvesse muitos oportunistas, muita gente que começou a destruição do Estado Social que agora diz querer defender, há uma coisa que percebemos: o incómodo dos fiéis da austeridade e do paco orçamental com aquele encontro é justificado e é muito significativo. É que alargar o campo da resistência sem sectarismos em torno da defesa do essencial é a melhor arma para juntar mais gente à luta pelo que é imprescindível: uma sociedade alternativa, uma economia gerida colectivamente, o fim da exploração e do capitalismo.
Quem está disponível para esses combates, não está disponível para ficar a falar sozinho.
1- Momento da hegemonia: Tudo será como dantes e nada será como dantes.
Tudo voltará a ser como dantes e nada poderá voltar a ser como dantes. Ou seja, não deveremos voltar a viver acima das nossas possibilidades mas voltaremos a viver da mesma maneira como vivíamos antes da crise. Nesta fase, a hegemonia austeritária enuncia-se enquanto ambiguidade e contradição.
A austeridade, dizem, é necessária para pagar as dívidas, para que a troika se vá embora do país e para “voltar aos mercados”. Suspenda-se o juízo crítico (se possível) sobre a natureza dessa dívida, sobre a quem a conta foi apresentada, sobre toda a construção discursiva do moralismo da dívida ou sobre o masoquismo da aceitação desse discurso. Não nos ocupemos do mito mediático desse regresso aos mecanismos obscuros do endividamento pelo lucro especulativo, um argumento pseudo-técnico demasiado fraco para fazer aceitar tão massiva dose de austeridade. Resta-nos a ilusão pós-troika.
A ilusão pós-troika é a política da indefinição de não afirmar o que ficará da austeridade depois da saída da troika no final deste “programa de ajustamento”. A vagueza desta ilusão situa-se algures entre a promessa de alívio insinuada e a ameaça não-dita de eternização da situação atual. A ilusão pós-troika pode ser vista como o mito comedido, o mito político do “do mal o menos”, o mito à medida do tempo das inevitabilidades. Mas é mais que tudo isto.
É também mais do que o oásis do “está tudo a correr como esperado” ou do “há claras melhorias na situação económica”. É diferente, aliás, do discurso dominante nas austeridadezinhas anteriores que costumavam utilizar esse instrumento da invenção do oásis. Não se trata de fazer acreditar no impossível presente (que já está tudo bem), nem tão só de fazer acreditar no possível futuro (que vai ficar tudo bem com o apertar de cinto que trará o crescimento). Não é só essa estafada apresentação do que se quer impor como permanente (a austeridade) como meio temporário para uma finalidade.
Trata-se de afirmar o deserto enquanto oásis e enquanto único futuro possível e desejável. De prometer, celebrando ao mesmo tempo essa promessa como impossível a partir do conjunto de pressupostos assumidos, o regresso ao passado maldito dos direitos sociais. Trata-se da política do paradoxo de breve prazo. Tudo voltará a ser como dantes e nada poderá voltar a ser como dantes.
Daí que implique um regime discursivo diferente, uma dialética brutal acoerente, uma estranha retórica para tempos estranhos.
A ilusão pós-troika afirma o indizível politicamente. Empobrecemos para sermos pobres permanentemente. Os mecanismos de transferência de riqueza do trabalho para o capital vão-se perpetuar. A austeridade é um estado de exceção permanente.