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O professor de Filosofia Paulo Tunhas escreve um artigo a defender os bombardeamentos e a invasão da Palestina pelo exército israelita na mais recente plataforma panfletária online da direita portuguesa. É sempre interessante confrontar-nos com as estratégias argumentativas e as falácias de um professor de Filosofia (como também já fui mestre desse ofício, sintam-se à vontade para fazer o mesmo comigo). Claro que este artigo não é um tratado de Filosofia. Mas situa o debate numa forma a-histórica e sem contexto social onde alguns pensam que a Filosofia se deve enclausurar para estar mais confortável. Apesar de não estarmos à vontade na planura deste tipo de argumentação, acamparemos por aí. O escopo deste texto é, portanto, limitado, e segue de perto o tipo de argumentos apresentados.
O artigo começa com a acusação de má-fé de quem se oponha às suas teses (será que essa tal má-fé não explicada é a modalidade central de oposição às teses israelitas?) como forma de introduzir um pseudo-pedido de desculpa pela «elaboração do óbvio» que se encena no texto. Começa portanto com um estratagema que não é brilhante (porque é demasiado óbvio na sua artimanha) mas que é significativo do objetivo: todo o bom senso se deveria render ao óbvio israelita, fora dele apenas a má-fé de uns ou a ingenuidade de outros. Aquele que foi um dos pensadores da evidência, apresenta-se agora como profeta do óbvio.
Sublinhe-se que este óbvio segue fielmente a pauta que a embaixadora de Israel em Lisboa, Tzipora Rimon, apresenta num artigo publicado no jornal Público.O óbvio que enaltece o sistema anti-míssel israelita «capaz de identificar e interceptar os mísseis passíveis de atingir centros populacionais», que cria agora uma mitologia sobre os avisos prévios dos bombardeamentos israelitas e a tese de que o Hamas procura, pelo contrário, atingir áreas residenciais israelitas e de que as vítimas dos bombardeamentos são culpa desta organização que usa civis como escudos humanos. Em algumas partes, de tão óbvios, os argumentos do filósofo e os da embaixadora confundem-se ao ponto de parecer cópia. E o que acr escenta Tunhas não aprofunda nem melhora a argumentação. O óbvio enquadra-se afinal numa máquina de propaganda por repetição.
Depois do apelo ao óbvio, Tunhas prossegue com a ilustração com a qual começa a pensar este conflito. A imagem de partida, claro, escolhe-se como início da narrativa e como arrasamento da história: usam-se os detalhes da execução dos adolescentes raptados de forma a ganhar o lado emotivo do leitor. E, seguindo-se o exemplo do assassinato de um adolescente palestiniano por colonos israelitas, tal não surge para aparentar isenção ou mostrar que há violência dos dois lados mas para tentar provar a diferença: o primeiro-ministro israelita «reagiu prontamente, apelidando o acto de “terrorismo”» enquando os palestinianos teriam regozijado sanguinariamente com a morte dos israelitas(segundo os exemplos apresentados e escolhidos a dedo, dos quais se poderia perguntar se são significativos do pensamento palestiniano sobre o tema).
Só que, poder-se-ia também afirmar, a diferença que é mais significativa no que diz respeito ao desenvolvimento do conflito é que o primeiro-ministro israelita que diz não distinguir terrorismos bombardeia e invade a Palestina sob o pretexto de um dos assassinatos mas não bombardeia nem invade os colonatos extremistas israelitas por causa do outro assassinato.
Momento seguinte: o lançamento de rockets que teria «ao mesmo tempo» subido dramaticamente (aqui o óbvio será tão óbvio que não se acompanha de provas, de números ou fontes indepedentes). Repetindo a embaixadora, Tunhas afirma «claro que o muito efectivo sistema de defesa israelita, a Cúpula de Ferro, tem impedido que o número de mortos seja elevado.» O pressuposto de que o exército israelita bombardeia humanitária acompanha-se pelo pressuposto de que o Hamas lança rockets da forma mais assassina possível. Pressuposto que se procura fazer assentar na carta do Hamas de 1987 (não há documentos ou tomadas de posição mais recentes?) e cuja citação apresentada se encontra profusamente na internet como originária de outra fonte.
Dito isto, Tunhas insurge-se contra a «fauna abundante» que defende que Israel «não deveria reagir» (reagir ao quê?), para imediatamente a seguir afirmar: «no fundo, Israel deveria deixar de existir, deveria desistir da sua própria sobrevivência.» Ou seja, esquecendo já os assassinatos que foram apresentados como motivo, Tunhas, como a embaixadora de Israel, passa magicamente da ideia do bombardeio inofensivo do Hamas ao perigo de sobrevivência de Israel. A sobrevivência de Israel é uma justificação também ela desproporcionada.
O momento óbvio seguinte é o que imputa as vítimas civis exclusivamente ao Hamas:
«Se há vítimas civis, isso deve-se, antes de tudo o mais, ao facto de as armas do Hamas e os seus centros de acção se encontrarem propositadamente localizadas no meio de populações civis, ou em mesquitas, hospitais e escolas, e de o Hamas tentar impedir que as pessoas, antecipadamente avisadas dos ataques por Israel, saiam do sítio onde estão, e onde estão também os responsáveis políticos e militares terroristas que dessas pessoas se servem como protecção.» A repetida tese do «aviso prévio» parece ser agora peça central na argumentação dos defensores do exército israelita. Curiosamente, os adeptos recém-convertidos ao «aviso prévio» de ataques não achariam tão humanitários os ataques com aviso prévio feitos pela ETA. E, para além de seletivo, o argumento é claramente falacioso como prova o artigo que responde no Público à embaixadora.
O aviso prévio é uma sms/telefonema enviada aos milhares com três minutos de antecedência. E se quisermos procurar um óbvio alternativo facilmente equacionaremos que é improvável que um exército empenhado em assassinar os dirigentes do Hamas e eliminar os misseis supostamente escondidos avise os alvos antes de os atingir o que tornaria as ações ineficazes.
Este artigo termina originalmente, com as razões que o autor encontra para a «extravagante vontade de acreditar no Hamas» (claro que só se pode partir do princípio que quem levante dúvidas sobre a atuação do Estado israelita estará do lado do Hamas, organização que se acabou de denegrir e que sobre a extravagante vontade de acreditar piamente no exército israelita nada é dito). São cinco razões:
1- «Para além de uma genérica piedade com o sofrimento humano que só pode merecer simpatia e acordo.» Sobre esta razão prévia nada se diz mas sobre ela impende a suspeita de ingenuidade.
2- «Uma certa vocação para Cavaleiro Andante que vem dos sonhos da infância e que não resiste ao apelo do quadro de um David (imaginário) a lutar, quase indefeso, contra um Golias (não menos imaginário).»
3- «Um secreto gosto romântico pela violência, sobretudo pela violência longínqua e “revolucionária”.»
4- «Uma não excessiva consideração pela democracia. Israel é um país democrático, e a democracia não excita (a não ser nos últimos delírios com a “Primavera Árabe”). Para mais, sendo localizada naquela região, Israel estraga a paisagem. Está culturalmente demasiado próxima de nós para poder geograficamente estar onde está. Ao mesmo tempo, é real. De uma certa maneira, precipita-se em Israel, porque Israel vive numa situação-limite, a questão da possibilidade e da sobrevivência da democracia.»
5- «Anti-semitismo. É certamente uma palavra que se deve usar com muito cuidado, mas também aqui, em certas bandas mentais, a coisa entra em jogo.»
Ou seja, desfilam as personagens estereotipadas na cerimónia de encerramento do artigo: dos ingénuos, aos revolucionários de má-fé aliados aos terroristas sanguinários. Já para não falar anti-semita que é lançado de forma aparentemente inocente mesmo no final do artigo, como acusação que fica a pairar sem destinatário conhecido. Destes fantasmas psicológicos de Tunhas que procuram ocupar todo o espaço de quem não louve o comportamento do Estado israelita pouco resistirá a uma análise. Espremidos os fantasmas caricaturais que só serão óbvios para quem lhes pretende dar vida, a única novidade é também um velho argumento destes debates: a imagem utópia da democracia israelita. Mas, entrando por aqui, perde-se facilmente: porque é tudo menos óbvio que um Estado religioso, que depende da ocupação e da expulsão dos habitantes de um território, que sobrevive assente na exclusão dos palestinianos e na força permanente das armas seja um Estado democrático. E parece-me óbvio que será preciso mais esforço intelectual do que a propaganda do costume para quem queira justificar o que se passa agora mesmo em Gaza.
Já lá vai mais de um ano. A minha viagem à Palestina decorreu entre 10 e 15 de Novembro de 2012, no âmbito da “Semana Internacional da Juventude”, organizada pela Autoridade Nacional Palestiniana (ANP). Durante aqueles dias percorremos toda a Cisjordânia, visitando cidades como Hebron (Sul), Nablus (Norte), Qalqilya ou Belém. Embora reduzido, o tempo ali passado foi suficiente para compreender a obscena realidade da ocupação israelita. Os checkpoints, o “muro da vergonha” que segrega os Palestinianos, as aldeias destruídas, os campos de refugiados, as partes restritas das cidades árabes, os colonatos (cidades e bairros israelitas construídos em locais onde anteriormente se encontravam povoações palestinianas, entretanto destruídas). A pobreza, a falta de condições, as inúmeras estradas interditas aos árabes ou os vastíssimos terrenos deixados ao abandono, onde o lixo se acumula. A ocupação sionista tem consequências em todas as dimensões da vida de um Palestiniano. Eram sempre dois os elementos comuns àqueles com quem travei conhecimento: familiares mortos às mãos do exército israelita e familiares obrigados a emigrar, a fugir da sua própria terra. Uma panóplia de acontecimentos, histórias e imagens povoam a minha memória. Hei-de aproveitá-las para escrever outros textos, abordando diferentes impressões desta viagem. O que agora pretendo contar são três episódios que experienciei e que me elucidaram relativamente à prepotente actuação dos soldados israelitas, e à forma como a ofensiva ideológica penetra profundamente no imaginário de uma importante parte dos cidadãos israelitas.
Enquanto em Portugal o dia 14 de Novembro de 2012 ficaria marcado por uma das maiores repressões policiais de sempre, eu testemunhava, na Cisjordânia, os aterrorizadores métodos de coerção levados a cabo por uma das maiores potências militares do mundo. Naquela data realizavam-se, por toda a parte, acções de rua e manifestações pela libertação da Palestina. Em conjunto com dezenas de outros activistas europeus, segui para algumas acções, que consistiam em bloquear estradas de acesso aos colonatos. Visto tratarem-se de acções surpresa, não nos foi dito com exactidão para que locais nos dirigíamos. Na primeira paragem, deparamo-nos com uma enorme fila de carros, provocada pela barreira humana que vários activistas, mais à frente, já construíam. Saímos do autocarro, de bandeiras em riste, prontos a entoar algumas palavras de ordem. Pouco depois, imperava uma terrível sensação de asfixia. O exército israelita já lá chegara, e a sua presença era notada por um motivo particular: o gás lacrimogéneo que pairava na atmosfera, lançado para dispersar os manifestantes. Lacrimejamos e sentimo-nos intoxicados. Era agora possível vislumbrar a verdadeira face do regime sionista. Pela primeira vez, eu experienciava os efeitos do gás lacrimogéneo. Pela milésima vez, os activistas palestinianos sentiam na pele os mesmos efeitos, já que o método é extremamente usual naquelas circunstâncias. Saindo do carro, um israelita pergunta-nos, em tom irónico, quem somos e o que ali fazemos. “Porque é que se vêm manifestar para aqui? Façam-no nos vossos países! Bem-vindos a Israel!”, grita, rindo-se.
O apertado controlo do exército e a sua ininterrupta vigilância leva-o a reprimir em tempo recorde. Os recursos militares disponíveis proporcionam uma monitorização quase ilimitada. Nas acções seguintes, embora tenhamos conseguido demonstrar o repúdio à política de ocupação israelita, os militares chegavam num ápice, obrigando-nos a desmobilizar. Armados até aos dentes e munidos de portentosas metralhadoras, são ensinados a odiar os árabes e a considerá-los terroristas. A propaganda ideológica israelita molda-lhes o pensamento e as vontades.
Seguimos para nova acção. Desta feita, somos parados pelo exército durante o percurso. Arrogantemente, o soldado obriga o condutor Palestiniano a identificar-se e, apercebendo-se de que este transportava um grupo de activistas, retira a chave da ignição, guardando-a. Somos impedidos de continuar. Um membro da ANP aconselha-nos a abandonar o autocarro e a prosseguir a pé. Assim fazemos. Indignados, seguimos com as bandeiras Palestinianas levantadas e a cantar as palavras de ordem. Depois de caminhar 300 metros, ouvimos o jipe do exército, que se dirige velozmente até nós. Um dos soldados sai e aproxima-se bruscamente, empunhando uma metralhadora. Dá a sensação de que se prepara para disparar. Os ânimos exaltam-se, distinguem-se gritos de pânico. O militar não dispara, mas agride um dos activistas, que cai ao chão. Escapamos pela berma da estrada, atravessando um terreno árido em direcção à bomba de gasolina que dali se avistava. O momento de aperto passa, mas fica patente a frieza e agressividade com que se trata quem ousa pôr em causa o apartheid do século XXI. Se, em vez de activistas europeus, aquele grupo fosse maioritariamente constituído por Palestinianos, não tenho dúvidas de que o soldado dispararia convictamente. É o que acontece em muitas ocasiões.
Muitos pormenores são deixados por contar, mas aqui transmito alguns dos momentos mais tensos que já vivi, no seio de uma ocupação militar mantida com o apoio do imperialismo norte-americano. A narrativa construída em torno deste conflito, amplamente veiculada pelos órgãos de comunicação social convencionais, vota ao simplismo uma realidade complexa, caracterizada pela discriminação, opressão e violação dos mais básicos direitos humanos, civis e políticos. Um último episódio ilustra na perfeição o desprezo e a indiferença que uma parte dos cidadãos israelitas nutre face ao poder das amarras que constringem os Palestinianos, no quadro da hegemonia ideológica sionista. Na última acção de bloqueio de estradas, e quando alguns activistas se posicionavam para impedir a passagem dos carros em direcção aos colonatos, um carro Israelita acelera e passa a alta velocidade, abalroando um dos rapazes que ali se encontrava. O condutor segue viagem, sem olhar para trás. Felizmente, a investida apenas provocou ferimentos ligeiros àquele activista. Mas tal lamentável atitude é sintoma da leveza com que se consideram os justos anseios de um povo humilhado e enclausurado. Muito se fala nas saídas para este conflito, referindo-se a constituição de dois estados como a solução mais viável. Essa é até a posição oficial da própria ANP. Contudo, a meu ver, tal alternativa é uma falácia. Israel nunca vai permitir a existência de um estado Palestiniano. Mesmo depois do mais recente reestabelecimento de negociações entre ambas as partes, Israel continua a construir colonatos, a destruir cidades árabes, a alargar os muros e a arrasar física e psicologicamente os Palestinianos. Afinal, até que ponto a própria ANP, promotora de uma política de conciliação com Israel, serve os interesses da população? Estará disposta a estimular a mobilização e a empreender os métodos de luta necessários à libertação? Tenho muitas dúvidas, mas guardo-as para uma futura reflexão.