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O moinho e o call center

por carlos carujo, em 18.06.14

A velha música de Cartola não era banda sonora. A leitura fez-se no silêncio. E, contudo, os seus versos insinuavam-se obstinadamente:

 

 

«Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.»

 

 

O samba não era apenas o ritmo da distração ou da incapacidade de concentração. Mas a música também não se encaixava diretamente no que se lia. Se o pessimismo da letra de Cartola nos lembra que o mundo é um moinho, o livro do João Carlos Louçã (Call Centers, Trabalho, Domesticação e Resistências, Deriva Editores, 2014) traz-nos outra imagem: a do mundo do trabalho contemporâneo como um call center. Nele é todo o consenso dominante sobre o trabalho e os seus modos de organização que se encontram dissecados lucidamente: precariedade, produtivismo absurdo, controlo asfixiante de ritmos e espaços, normalização de procedimentos, avaliações como forma de poder discricionário, subversão por cima de elementos basilares das tradicionais relações de trabalho como o horário, o salário ou o contrato, imposição das ideologias do sucesso, da competição e do falso espírito de grupo ao mesmo tempo da atomização e do estilhaçar da consciência de classe.

Sob a forma da «modernidade regressiva», o mundo é um call center que nos vende a naturalização da nossa exploração. O call center é, assim, o símbolo da destruição de direitos e um barómetro das mudanças no trabalho nas últimas décadas. O João Carlos consegue juntar o enquadramento teórico-político com a análise empírica produzindo um documento importante para se pensar a precariedade em Portugal.

Mas talvez a canção tivesse razão em insistir. Talvez tenha insistido porque afinal o call center é igualmente um moinho no sentido de ter a força para triturar os sonhos da intermitência permanente das vidas precárias. Este livro dá voz às perceções para além dos sonhos triturados e às ilusões persistentes de quem trabalha num call center mas mostra ainda o call center como lugar de resistências improváveis, dos micro-boicotes a outras formas de «luta de classes de baixa intensidade» nas quais se combate ingloriamente contra um «patrão invisível».

Serão importantes ou viáveis? A pequenez invisível do gigantismo patronal que não tem respeito pelas vidas que esmaga tem força desproporcional face à «identidade frágil» nanizada a golpes de falsa motivação e de verdadeira desvalorização do trabalhador.

Gigante ou moinho? Fará diferença? Lutar nestas circunstâncias será apenas quixotismo?

Um novo embate entre a música e o livro impõe uma escolha. Hoje, estando como estamos à beira do abismo coletivo, para que não herdemos dos nossos amores e das nossas lutas só o cinismo, é preciso preferir o optimismo da vontade transformadora que arrisca que outro trabalho é possível à contemplação pessimista dos sonhos triturados.

E o João Carlos lembra-nos das forças que temos para além dos Quixotes:

«Rocinante e Sancho Pança sabem que são eles que permitem as investidas contra os moinhos de vento, mesmo quando é o fidalgo alucinado que mantém a atitude altiva e, no seu delírio, acumula glórias. Até um dia que resolvam deixar de o fazer.»

Ainda que o mundo seja um moinho é importante lembrar que os sonhos triturados são os de Sancho Pança e de Rocinante e que a engrenagem se alimenta desses sonhos que cria e destrói. Mesmo que não se vejam falsos gigantes mas verdadeiros moinhos, com toda a consistência da pedra, há que escolhar embater contra eles. Porque nós, nós, os pequenos, com a consciência de que só nos agigantamos quando somos todos do mesmo tamanho conseguimos cavar bem mais do que um abismo com os nossos pés.

E quem diz que os sonhos triturados não se podem semear?

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publicado às 16:04

Ciência e poder na era da austeridade

por João Mineiro, em 02.12.13

A ciência, o desenvolvimento e a liberdade científica são características fundamentais de sociedades mais desenvolvidas, coesas e democráticas. O desenvolvimento científico é potencialmente gerador de sociedades que se pensam melhor a si mesmas, que pensam melhor o mundo em que vivem e como o podem respeitar e usar para viverem melhor. Sabemos que há boas e más formas de usar o conhecimento produzido pelas ciências, mas também sabemos que não esse problema não se resolve acabando com o apoio à ciência mas antes estruturando uma dimensão ética do uso do conhecimento científico.

 

Mas sabemos também que governos autoritários desenvolvem sobre a ciência dois grandes tipos de política: o primeiro é o de cortar brutalmente o financiamento e o apoio à democratização da produção científica; o segundo é o condicionar o apoio à atividade científica que justifique as teses, os lóbis e as narrativas de quem está no poder. Pouca ciência e ciência controlada politicamente sempre foram um projeto autoritário. O governo autoritário que hoje exerce funções em Portugal não foge à regra e já deu luzes sobre os seus objetivos: cortar nos apoios generalizados à investigação científica e garantir que apenas tem apoios se não ousar produzir conhecimentos que deslegitimem o poder.

 

Os números recentes do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional, mesmo com dados de 2011 do ano em que Passos Coelho entrou no Governo, são claros: nesse ano houve uma quebra 140 milhões de financiamento geral à ciência em relação ao ano anterior. Só o Estado, entre 2009 e 2011 reduziu 8 milhões de financiamento, enquanto as Instituições de Ensino Superior – atualmente asfixiadas financeiramente pelo Estado -, reduziu em 23 milhões de euros o financiamento. 2011 foi por isso o orçamento mais baixo desde 2008. Mas se parte desta tendência não é da inteira responsabilidade deste Governo, será que o Orçamento de Estado deste ano, aposta uma inversão desta tendência? Naturalmente que não.

 

Este Orçamento de Estado aposta numa redução do orçamento disponível para a FCT em cerca de 4%, passando o seu orçamento de 416 milhões de euros para 404 milhões de euros. Este é o seguimento do que tem sido aplicado nos últimos anos: de 2012 para 2013, a FCT já tinha perdido 53 milhões de euros. Por outro lado, o Orçamento de Estado corta 26 milhões de euros em bolsas de investigação científica, reduz em16% o investimento na ciência, quando comparado com 2011. Ao mesmo tempo que a FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia -, já anunciou o corte no número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e uma redução do financiamento aos centros de investigação. A intenção é só uma: vedar o acesso a condições de investigação e condicionar a atividade científica.

 

Mas não é só por via nos cortes generalizados à ciência que se dá este ataque. É bom lembrar acarta enviada à FCT pela Associação Portuguesa de História Económica e Social, a Associação Portuguesa de Ciência Política, a Associação Portuguesa de Sociologia, a Associação Portuguesa de Psicologia, a Associação Portuguesa de Antropologia e a Associação Portuguesa de Geógrafos.

 

Nesta carta, as associações científicas das ciências sociais contestam os critérios da escolha do conselho científico de ciências sociais e humanas da FCT, considerando que não preenchem critérios de exigência científica e currículo académico, solicitando a revogação da decisão. É sintomático uma unidade tão grande de tantas associações na contestação do júri. E não é para menos. A perplexidade das associações quanto à composição do júri, é a mesma que a de muitos candidatos a bolsas da FCT que alteram deliberadamente as suas escolhas científicas na feitura do projeto porque sabem que o financiamento depende também do facto de os objetos de estudo interessarem ou não a quem está no poder. É assim que se substitui auto-organização, solidariedade, classes, resistência, identidades coletivas, desigualdades, movimentos sociais, precariedade, por empreendedorismo, resiliência, inovação, globalização, modernização, liderança e competitividade. Diferentes conceitos refletem diferentes escolhas do que se quer investigar. E em questões de financiamento, para o poder há coisas mais e menos legítimas para se estudar. É por isso, a título caricatural, que hoje uma pessoa que quer ter acesso a uma bolsa de investigação, se colocar empreendedorismo no título, as suas probabilidades aumentam substancialmente.

 

É certo que não é sempre assim, que há quem insista em contrariar estas tendências e oriente a sua conduta académica pelo rigor na avaliação de projetos. São pessoas que nas universidades portuguesas e nos centros de investigação orientam a sua conduta por ética e responsabilidade pública. Pessoas que não cedem à pressão. Ainda bem que assim é. É de todas essas pessoas que precisamos, para lutar por uma ciência que não se deixa vencer, nem consumir pelas narrativas do poder.

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publicado às 13:17

pensar e organizar a resposta

por João Mineiro, em 05.11.13

É Sábado. Entre o MOB - espaço associativo e a Escola de Música do Conservatório Nacional. 

 

Há documentários. Organizações de França, Grécia, Estado Espanhol e Alemanhã. Debates abertos com investigadores, activistas, jornalistas, actores, sindicalistas, músicos, geógrafos, economistas e tantos outros. 

 

E há workshops políticos de música, stencil, comissões de trabalhadores ou serigrafia. 

 

E ainda há tempo para festa e conhecer muita gente. E uma peça de teatro fórum.

 

Faltam três dias, aparece por lá, para um fim-de-semana bem passado.

 

 

 

 

 

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publicado às 19:13

332 pessoas deixam Portugal todos os dias.

por Rodrigo Rivera, em 31.10.13

 

A juventude de hoje vê-se obrigada a escolher entre o desemprego, a precariedade, e o exílio laboral. Isto é a consequência da gestão pública da crise da dívida pelos governos da Troika, do seu Memorando. É um ataque brutal feito contra os cidadãos e a democracia, e uma das consequências mais dramáticas é o esvaziamento do país daqueles que ainda podem emigrar. Pais que vêem os filhos partir, irmãos que vêem irmãs partir, avós que vêem o tempo a voltar para trás sem força, sem unidade que resista à escuridão dos tempos da Troika.


O pior desta notícia do Público é que estes números estão completamente errados. Como devem imaginar, a maior parte dos jovens não avisa de nenhuma forma o Estado português que vai emigrar. Simplesmente vai. Foi o que eu fiz, é o que muitos vão fazer hoje, amanhã e depois de amanhã. Segundo as contas da notícia, 332 pessoas deixam o país a cada dia que passa, para não voltar.

O combate à debandada geral, ao exílio laboral a que centenas de milhares de pessoas, principalmente jovens licenciados, estão obrigados, é uma emergência nacional. Há aqui alguém que ainda não tenha conhecidos que partiram recentemente em busca de uma vida digna?

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publicado às 23:27

O Expresso anda a brincar com a vida das pessoas. Ou melhor, uma tal de Maria Martins, jornalista do Expresso, apresenta-nos uma notícia verdadeiramente reveladora sobre os estágios não remunerados. Reveladora não pelo conteúdo inovador ou surpreendente do que escreve, mas sim pela estupidez com que usa um órgão de comunicação social para difundir um vil, absurdo e mal escrito texto de apelo às vantagens dos estágios não remunerados.

 

Diz a jornalista que devemos pensar duas vezes antes de rejeitar um estágio não remunerado. Diz que a experiência que vamos ganhar não tem preço e que submetermos-mos a um estágio não remunerado nos trará imensas vantagens para o nosso futuro. Vejamos algumas delas:

 

“Os directores, o departamento de recursos humanos, os colegas, e mesmo outros estagiários, são pessoas que não conheceria de outra forma e que vão ficar com uma opinião sobre si e sobre a forma como se dedica ao trabalho”

“Um estágio obriga-o a reorganizar o seu tempo, ensina-lhe que assiduidade e pontualidade não são conceitos vagos, e que servir cafés e fazer fotocópias não são um cliché das comédias de Hollywood.”

“O facto de estar a conciliar o curso com um estágio vai fazê-lo subir na consideração dos seus professores, dos seus pais e dos responsáveis da empresa”

“Revela vontade em aprender mais do que aquilo que lhe é ensinado na universidade e espírito de sacrifício para abdicar de tempos livros, e usar as poucas horas que lhe sobram entre as aulas e o estágio, para se dedicar ao estudo.”

“Este é o melhor cartão de visita que pode apresentar a uma empresa. Enquanto um currículo é uma carta em branco, um estágio permite à empresa perceber que tipo de pessoa tem à frente.”

“Ter de conciliar as aulas, o estudo, o estágio e as noitadas com os amigos, vai ajudá-lo a amadurecer e a sentir-se melhor preparado para enfrentar novos desafios no futuro. “

 

Cara jornalista,

 

Por muito baixo que seja este texto de propaganda mascarado de notícia, e por muito absurdos e vergonhosos que sejam os seus argumentos, queria-lhe dizer que não lhe desejo a mesma sorte que têm as milhares de pessoas que fazem trabalho gratuito para empresas que as usam para fazer trabalho que deveria ser remunerado e para baixar as condições de trabalho dos outros trabalhadores. Não desejo que você seja um objeto descartável que as empresas usam a pretexto daquilo a que você chama de “desenvolvimento de competências”, para depois a mandarem para olho da rua assim que o estágio acabe, e que outro estagiário se ofereça para fazer o mesmo trabalho que você oferece de forma gratuita. Não lhe desejo que você viva um dos mecanismos mais violento da escravatura moderna.  

 

Mas desejo-lhe uma coisa.

 

Deixe de envergonhar os bons profissionais que se empenham em fazer jornalismo de qualidade. Deixe de envergonhar uma democracia que é menos sólida quando tem os seus órgãos de comunicação social a servirem textos de propaganda mascarados de notícias. Deixe sobretudo de envergonhar um país que vive desesperado pelo desemprego, a precariedade, a emigração e para a qual a senhora sugere que vão trabalhar de borla. 

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publicado às 13:17




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