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Algum tempo atrás foi aqui lançado um manifesto para desunir a esquerda. Manifesto provocador, é verdade, mas no qual me revi pois apontava para uma questão chave: na urgência de enfrentar o governo e a troika, não podemos esperar que a afirmação de alternativas à esquerda seja conseguida fazendo tábua-rasa da diversidade de reivindicações e de identidades da dita cuja (usando os termos então adoptados). No aplanar dessas diferenças está a nossa fraqueza, não a nossa força. A união, enquanto “concórdia de vontades” tão heterogéneas, e num contexto tão complexo como o actual, dificilmente se consegue em menos de meia dúzia de meses. Basta pensar na experiência do “Começar de Novo”, que esteve na base da criação do Bloco de Esquerda (e cuja a morte foi já declarada milhentas vezes) e nas dificuldades de um percurso colectivo de cerca de 15 anos, para perceber o complicadito que isto tudo é. É que às vezes tanta unidade até cansa!
Subjacente a este debate da união das esquerdas há um conjunto de contradições que atravessa a política partidária (e imagino eu, que não sejam exclusivas do Bloco) e os movimentos sociais. São algumas dessas contradições que gostaria de apontar pois me parecem cruciais para entender os limites e as possibilidades de construção de alternativas à esquerda. Distingo sete contradições: o individual e o colectivo; a política e a emancipação; a política e o social; o nacional e o internacional; o crescimento e a ecologia; o trabalho e a vida; a resistência e a transformação. Abordarei as três primeiras agora e as restantes num próximo post.
O individual e o colectivo
Há muito que a acção colectiva não andava tão na moda. Os protestos dos últimos anos trouxeram um novo alento num mundo onde o invidualismo impõe o isolamento. No entanto, e curiosamente, com ela afirmou-se também a desconfiança em relação às organizações, em particular as tradicionais, nomeadamente partidos e sindicatos (mas não só). Desde as acampadas até aos congressos das alternativas (e ninguém dirá que se trata de uma mesma cultura política), viu-se a afirmação fabulosa de que “aqui não há organizações, só pessoas, individualmente”. Alguém acredita nisso? Alguém acredita que a capacidade de participação e o peso político de cada pessoa está imaculado das relações sociais em que se insere? Não nos iludamos: no contexto da disputa política, actores fracos dependem muito mais da sua capacidade organizativa para fazer valer os seus interesses e têm muitas mais difuldades de acesso a recursos cruciais para os resultados dessas disputas, como é o caso dos meios de informação e media.
A política e a emancipação
Esta contradição tem-se cruzado com um tema crítico no debate marxista, que pode ser resumido na velha máxima: o desenvolvimento de cada um[a] é a condição para o livre desenvolvimento de todos [ou de todas as pessoas, digo eu]. Se as correntes comunistas têm colocado a tónica da condição de emancipação no colectivo, as social-democratas colocaram no individual. As contradições abarcam desde as concepções totalitárias do Estado nas experiências de socialismo real até à capitulação da social-democracia numa espécie de “social-liberalismo”. Por outro lado, resumir a ideia emancipação à igualdade formal e à institucionalização de direitos pode ter sido eficaz na época dourada do capitalismo mas coloca hoje a esquerda na defensiva face ao resgate das estruturas institucionais pela chantagem do défice. Isso significa que devemos deitar fora o potencial progressista do processo de institucionalização de direitos verificada no pós-guerra? Claro que não. Mas não substimemos o impacto cultural que teve o neoliberalismo. É nesta linha que as recentes mobilizações têm um potencial assinalável – o ressurgimento da onda libertária é indicador disso mesmo.
A política e o social
“O que interessa é a política, não podemos andar por aí a fazer caridade.” Confesso que cansei-me dessa. Reformulo a questão levantada anteriormente: alguém acredita que a capacidade de participação e o peso político de cada pessoa está desligada das suas condições materiais e culturais de participação? A questão não se coloca apenas em termos de princípios democráticos, mas também em termos de resultados: alguém acredita que uma força alternativa que não envolva os sectores mais afectados pela austeridade tenha realmente a capacidade de mudar as relações de poder dominantes e ter um papel realmente transformador? A incapacidade de reconhecer, à esquerda, a importância deste problema é uma das razões pelas quais a extrema direita e os movimentos de cariz conservador (por exemplo, a igreja católica ou até mesmo as IURD's e afins) e populista têm encontrado espaço aberto para disputar o apoio de sectores populares. Não basta condenar a ascensão dos neofascismos. Antes disso é necessário responder ao caldo social e político que os alimenta. E entenda-se: voluntarismo humanista por si só, sem trabalho de conciência crítica emancipatória, não é solidariedade, é paternalismo caridoso; política sem atender à dimensão humana dos tempos que se vive é abstração pura e facilmente se enrederá no tacticismo.
(continua)
André Freire é mais um dos cronistas que se junta à torrente de opinadores sobre a «desunião das esquerdas». A sua explicação parte da ideia de que o problema são as «elites desavindas» da «esquerda radical» que acabam por excluir do «sistema de tomada de decisão» os eleitores que «preferem claramente a unidade» como «demonstram sucessivos estudos ao longo do tempo».
O problema com esta teoria, para além de homogeneizar um campo político (o eleitorado do PCP é igual ao do BE ou de outros partidos?), é que a crítica a tal elitismo acaba por dar um retrato um pouco elitista das massas votantes que não exigiriam mais que uma vaga unidade e a redentora governamentabilidade, ambas sem políticas e sem conteúdos. Essas massas votariam consistentemente numa «esquerda radical» mas no fundo desejariam apenas que ela acabasse por ceder ao social-liberalismo.
A insistência na predisposição do eleitorado por uma aliança que incluiria necessariamente o PS acaba por ser um remake da teoria de que há um espaço político à esquerda do PS pronto a ser ocupado por quem se mostre mais ponderado que estas «elites radicais». O que torna curioso que, os cenários apresentados para uma possível solução para o beco sem saída desta desunião que aproveitariam mais diretamente este espaço (a vitória eleitoral de um «partido do entendimento» ou a cisão de esquerda no PS) se apresentam como quase impossíveis apostando-se noutro: a «reforma do sistema eleitoral que premiasse os partidos que cooperam para a formação dos governos». Dito de outra forma: reduzir a proporcionalidade, afunilar as possibilidades de eleição de pequenos partidos, criando um sistema à alemã ou francesa «um sistema misto (...), mas com duas voltas na componente uninominal». Quanto a isto creio que é preciso ser claro e escapar aos eufemismos: não se trata de «premiar» a cooperação mas de limitar possibilidades. Mas será que isso não é o caminho mais rápido para reforçar o binarismo das alternância sem alternativa? E convém também acrescentar a pergunta: nos países que se parece ter como modelos (França e Alemanha) o sistema eleitoral é mais justo? Foi por causa deste sistema que existiram as malogradas experiências de governo com verdes e PCF? Estas julgam-se agora como um sucesso?
Curioso é também que, apesar de se lançar o ónus do problema para cima dessas elites desavindas da esquerda radical, não deixa de se constatar o óbvio: «o PS também não ajuda para a concretização de alianças à esquerda (...) porque sempre foi um dos partidos mais centristas da família socialista europeia» e «porque, apesar da devastação criada pelo Governo mais neoliberal de sempre em termos de desinvestimento na escola pública, de estrangulamento financeiro das universidades públicas, de desinvestimento e favorecimento na ciência, de dificultação do acesso à saúde, de cortes nas prestações sociais e nas remunerações de servidores públicos e reformados, etc., a preferência de alianças no PS continua a ser com a direita.» Só que, apesar de tudo isto, no momento de desbloquear o impasse à elite política social-liberal incrustada no carreirismo e submersa nos interesses dominantes não se exige nada. Cabe juntar mais questões: não sairia esta outra elite bem mais elitista claramente reforçada de uma reforma eleitoral que introduzisse círculos uninominais? Para que precisaria ela da esquerda se a pressão do voto útil num sistema a dois turnos como é proposto lhe é mais do que favorável?
Como já referi alhures, se parte da chave da questão da unidade está na discussão política e na questão do programa, outra parte não menos importante está na avaliação da natureza do social-liberalismo. Há várias hipóteses de leitura da situação que se agarram desesperadamente à ideia de que o oportunismo do Partido Socialista é uma oportunidade para os partidos à sua esquerda, ou seja, que se ameaçado e perante a escolha entre perder eleitorado fortemente para a sua esquerda e aliar-se governativamente a esta mesma esquerda o PS escolheria (por mero pragmatismo) a segunda alternativa e o que redundaria (?) numa governação à esquerda.
Creio que é um exercício especulativo ilusório e que ignora as diferenças entre a velha social-democracia reformista e osocial-liberalismo realmente existente desde a «terceira via». É também pôr de lado ostensivamente os vínculos que ligam esta opção ao donos do país, da Europa neoliberalizante e das finanças mundiais.
Para além do mais, os tempos excepcionais em que vivemos tendem a colocar-nos perante escolhas difíceis como as de memorandos, resgastes, austeridades light, submissão à finança internacional. E uma esquerda que abdicasse do que é para se manter à tona de um sistema eleitoral adverso afogar-se-ia nesse pântano social-liberal.
Tal como vários outros autores, existe no artigo de Freire um eclipse da estratégia, uma obliteração das políticas que realmente contam. Aqui este vazio é preenchido por outras contas que parecem de merceeiro: há 20% para se arrastar de A para B, de uma oposição supostamente estéril para uma governabilidade supostamente construtiva. Como se o eleitorado fosse fixo. Mas a perspetiva de André Freire também nos pode fazer pensar noutro cenário: tendo o mérito de nos relembrar quão politicamente relevante para os resultados é o sistema eleitoral sublinha a artificialidade da construção e pode mesmo sugerir que o caminho contrário ao proposto, um reforço forte da proporcionalidade, poderia ser um terramoto político...
São José Almeida, no Público, propõe a sua justificação para o fracasso de uma coligação de esquerda nas europeias.
Haverá alguns pormaiores para descontar no seu texto antes de entrar na questão que interessa aqui.
Todo o artigo é construído à volta da ideia da «herança de Cunhal» e do «modelo organizativo político que tem como referência em Portugal o PCP, que passa pelo funcionamento de acordo com as regras do centralismo democrático ou próximas dele, e que vive da ideia de se constituir em partido de vanguarda revolucionária que conduzirá à emancipação libertadora do povo, os trabalhadores, os operários, consoante o léxico nas diferentes épocas.»
Ao definir-se assim a temática, escolhe-se a simplificação extrema: não se diferenciam práticas ou tradições organizativas no interior dos partidos da esquerda anticapitalista; reduz-se o todo a uma qualquer variação mínima de um cunhalismo (sem especificar se existe um modelo de partido propriamente cunhalista); não se enquadra minimanente em termos históricos a tradição leninista. Todos diferentes, estes partidos seriam, no fundo, todos iguais.
Clarifique-se que a acusação tem um alvo particular. O texto é, sobretudo, dirigido ao Bloco de Esquerda que seria culpado de viver ainda na galáxia cunhalista (e por isso ser incapaz de uma política de alianças não sectária).
O processo de intenções de descobrir um leninismo vanguardista escondido na política bloquista é, diga-se, recorrente nas análises sobre o BE. Desde a sua fundação que se escrutinaram minuciosamente textos e práticas na ânsia de encontrar discrepâncias entre uma suposta agenda pós-moderna e um protoleninismo. Ao menor caso, declaração desastrada de um dirigente ou erro político imaginado ou clamoroso, sempre houve alguém disposto a desvelar a sua causa profunda num perigoso estalinismo emperdernido por sob aquela brilhante camada de verniz cosmopolita e mediático.
O problema deste artigo passa também por pressupor intenções «vanguardistas» sem sequer se dedicar à tarefa de mostrar as fontes de onde deriva a conclusão. Bastaria levantar a suspeita sobre os partidos fundadores do Bloco e pouco mais. Ora, o BE tem um determinado tipo de funcionamento mas não tem uma teoria de partido consensualizada (e digo-o não como se isso fosse uma virtude).
Tampouco o artigo procura (talvez seja pedir-lhe demais para os seus propósitos e dimensão) justificar a existência dessas intenções «vanguardistas» através do funcionamento interno do partido. E, também aqui, não escrevo para justificar o Bloco: há que reconhecer problemas organizativos, tentar encontrar soluções, mudar. E há que identificar causas: estes problemas decorrem mais das estratificações em que incorrem as organizações tradicionais, da divisão tradicional do trabalho nas sociedades em que vivemos, dos perigos do centralismo político, da mediatização e da institucionalização entre outros fatores do que de um leninismo bloquista.
A tese de São José Almeida não se interessa pela história, pelos escritos ou pelas práticas desse vanguardismo (bloquista ou comunista). Faz uma psicanálise selvagem dos dirigentes políticos da esquerda que «mesmo que não o assumam e até nem disso tenham consciência» estarão condenados a determinado ponto de visto e um exercício de idealização que liga a questão organizativa e a política de alianças a um ideal de vanguardismo revolucionário utópico que guiaria estes partidos que se veriam como messias a guiar o rebanho.
Desconte-se, já agora, outro pormaior a este respeito: uma aceção confusa de frentismo. Escreve Almeida que «o vanguardismo político próprio das forças que bebem no modelo de acção política leninista concretizou-se historicamente no chamado "frentismo político", através de movimentos unitários de Frente Popular.» O que a autora chama de frentismo é a ideia de que a aliança política é a subjugação ao partido guia. Descontam-se assim as minudências da história: para falar na política de alianças comunista seria preciso ir à história do movimento comunista internacional para perceber diferentes formas de frentismo, das frentes populares de governo com o PS às teorias da social-democracia enquanto social-fascismo etc., para tomar o PCP como modelo de frentismo seria preciso situar as suas várias atitudes políticas antes e depois do 25 de Abril etc.
As conclusões do artigo serão relativamente desinteressantes para pensar a esquerda anticapitalista: que é impossível «organizar movimentos democráticos e transversais hoje em dia com forças que persistem em considerar-se como vanguardas e se vêem como as detentoras da via correcta e da verdadeira linha justa para a condução das massas» e a redução (outra vez idealista) ao binarismo entre o utopismo vanguardista a que responde o pragmatismo bom.
Mas sublinhe-se que, por debaixo de algumas formulações desinteressantes, São José Almeida levanta um problema político profundamente interessante: como, nos dias que correm, organizar um partido (anticapitalista) o mais democrático possível não só enquanto instrumento de emancipação sonhada no futuro mas como ferramente de democratização permanente no presente; como construir um partido que não cave um fosso abissal entre «massas para conduzir» e «vanguarda política».
O ângulo de abordagem de Almeida parece não se dirigir tanto ao fosso dirigentes/dirigidos/as. Apesar de afirmar que a «vanguarda política surge desfasada na era da comunicação de massas» não equaciona aqui, por exemplo, o problema inverso nos partidos do sistema que se foram transformando de partidos de massas no período pós-revolucionário em partidos de espectadores que encenam consecutivamente a salvação da pátria a partir do rotatitivismo co-substanciado numa liderança unipessoal redentora.
Bem mais interessante do que as declarações de óbito do pensamento leninista é que continue, num contexto radicalmente diferente, a haver tudo por discutir sobre questões tradicionais como o que é um partido e como se deve organizar, se faz sentido essa ideia da vanguarda (ou o queria dizer quando tal foi escrito), o que é isso da consciência política e social e, sobretudo, como é possível resistir à barbárie.
Percebemos que há muita a coisa a mudar na esquerda, quando vemos a Constança Cunha e Sá a desmistificar mitos da unidade à esquerda e a dizer que só um louco de esquerda se sentaria para negociar com António José Seguro, quando vemos Herique Raposo a dizer que o Bloco acabar é mau para a democracia porque o PS fica sem o possível parceiro de negociatas e o João Miguel Tavares e a insurgir-se contra Daniel Oliveira e a sua tese de que é preciso um novo partido depois das europeias que meta medo e asute o PS para este ser obrigado a mudar de política.
Na unidade de esquerda, nem a direita se entende.
1- O grande papão do sectarismo
A propósito da unidade de esquerda, tenho visto várias referências à famosa sequência dos Monty Phyton da “Frente Popular da Judeia” e dos divisionistas. Daniel Oliveira no Expresso online é um dos que a utiliza. É interessante ver que a subtileza da utilização do exemplo dos Phyton, sugerindo as mais das vezes que o sectarismo são os outros (ora o sectarismo são sempre os outros, não é?), não consegue escapar da armadilha da caricatura. Mesmo se feita em nome da unidade, acaba-se a gritar divisionista para o vizinho do lado.
Um dos pontos a analisar antes de lançar uma acusação de sectarismo é se não estaremos a afunilar as nossas propostas de unidade de tal forma que o seu timing, o arco das alianças, a sua modalidade, os seus objetivos ou meios sejam colocados de forma absolutizada: a unidade ou é assim ou não será. Esta é portanto uma das armadilhas em que convém não cair ou corre-se o risco de se acabar a sugerir que todas as outras possibilidades não são “a unidade” a sério, aquela que é precisa, e, assim, acabar a sugerir que aos outros, por mais que digam o contrário, poderá ser colocado o rótulo de sectários, divisionistas ou irresponsáveis que não têm em conta o grave momento que vivemos.
Ora, se a unidade é fundamental há que ter alguma capacidade de integração do ponto de vista alheio ou então condenaremos perpetuamente os Monty Phyton à genialidade. As formas da unidade estão, assim, também elas em debate e a vontade de unidade não é um exclusivo de ninguém. Para começar este processo, que é o contrário de o enterrar ao primeiro contratempo, nada melhor do que a consciência das dificuldades.
Dificuldades sérias. Por isso, não basta o apelo de boa vontade à unidade. Claro que a boa vontade é necessária ao processo e os apelos também. Mas é preciso não cair noutra armadilha que nos conduziria a um beco sem saída: explicar a ausência de unidade por questões de egocentrismo, por acreditar que os outros, sempre eles bolas, não aceitam a via da unidade porque querem manter a sua quinta eleitoral, os seus pequenos privilégios, as suas migalhas do sistema.
Até porque somos todos humanos, dizem, convém não diabolizar uns e santificar outros: aos maus sectários não se contrapõem os bons unitários. Não há os dos interesses e os desinteressados. E se se pode suspeitar que uns fazem o que fazem porque querem manter o tal quintal, não se pode achar estranho que os outros rebatam que o discurso da unidade também poderá servir interesses pequenos como construir um pequeno espaço político próprio ou substituir as direções de um espaço político já existente.
Retóricas e interesses à parte, creio que é preciso afirmar que o problema central da inexistência de políticas de unidade à esquerda são os programas diferentes, os métodos políticos diferentes e os objetivos diferentes. E menorizar as diferenças em nome da angustiante urgência de alterar o rumo político do país não tem contribuído em nada para resolver a questão. É preciso, pois, partir do facto das diferenças vincadas e discuti-las aberta e aprofundadamente. Ter a capacidade de o fazer será dar uma alfinetada no grande papão a ver se o esvaziamos ao contrário de continuar a insuflá-lo de muitas maneiras.
2- Um pequeno papão para assustar o PS
O referido artigo do Daniel Oliveira é interessante porque procura responder a estas questões enquadrando a política unitária dentro de certos limites. Pode-se dizer que apresenta:
- um meio: a unidade é um partido (ou uma força sobretudo eleitoral);
- uma estratégia: a unidade é para conquistar eleitorado do PS assustando a sua direção;
- um objetivo: a unidade conduz a um governo de esquerda. Tenho para mim, precisamente, que cada um destes pontos é tudo menos evidente.
1- O meio “partido” e a intervenção eleitoral não são o único conteúdo possível da unidade de esquerda. Só assim será se acreditarmos exclusivamente na narrativa de que o que falta é uma força eleitoral que assuste o PS. Ora, de outro ponto de vista, pode-se contrapor que a unidade mais urgente é da mobilização e da luta social. Só ela pode contrapor aos poderes perenes do austeritarismo sendo assim uma força suficiente para meter medo não ao PS mas aos verdadeiros donos do país. Aliás, não haveria «governo de esquerda» capaz de aguentar as pressões a que seria sujeito sem essa força social mobilizada em permanência, sem a frente unida social.
2- A estratégia de entrar pelo eleitorado do PS dentro não deve ser absolutizada como a única possível desde um ponto de vista de esquerda. De um outro ponto de vista, a política de esquerda deve também dirigir-se aos «zangados da política», ou seja, todos/as os/as que dela são excluídos. A batalha contra-hegemónica nas camadas da população mais afetadas pela crise e mais sujeitas aos processos de despolitização é central e supõe metodologias, discursos e práticas diferentes.
3- O objetivo final da unidade não tem necessariamente de ser a participação de um partido num governo com o PS. A indisponibilidade do PS para tal ou a sua persistência no social-liberalismo são bastantes para inviabilizar tal projeto. Aliás, mantendo-nos no campo das possibilidades mais «moderadas», poderíamos colocar a hipótese de ser bem mais profícua a existência de uma esquerda parlamentar que se comprometa a viabilizar as propostas anti-austeridade e a contrariar as outras. Isto para não falarmos de tantas outras possibilidades de unidade que não estarão destinadas a limitar-se à política partidária e institucional porque vencer a austeridade não se pode limitar a ser só governar.
Parte da esquerda é influenciada por um fetichismo da governamentalidade como tentativa de contrariar uma suposta aversão juvenil ao poder (ou seja, como forma de contrariar um preconceito conservador). Não me parece que contrapor a vontade de governo a isto seja a melhor das obsessões para quem sabe que precisa de trabalhar muito para inverter a hegemonia do pensamento capitalista. Nem se passa a ser respeitável e credível face a um eleitorado só por se ter como projeto ser governo.
Para além do mais, um governo de esquerda, encontradas que sejam as pontes possíveis, teria de se confrontar com o paradoxo em que vivem as políticas sociais-democratas e de Estado de Bem-Estar nos tempos que correm: um governo minimamente de esquerda nesta correlação de forças é um desafio máximo à arquitetura da UE e do euro, uma afronta máxima à burguesia financeira internacional e aos donos do país que enriquecem com a crise.
Tal projeto de governo teria de responder à cabeça a questões bem espinhosas sobre dívidas, financiamentos, moeda, políticas de fundo, etc. As questões mais fraturantes.
Assim, junto com a conclusão de que um governo deste género seria um governo de combate social e de crise contra a crise, é preciso avançar outra: é impossível uma unidade mínima de esquerda com uma coligação com um partido de natureza social-liberal (será este o meu momento sectário?). E esperar que um partido mude de natureza só porque se espera vir a entrar-lhe pelo eleitorado como se este estivesse preso numa posição política imutável é um projeto mais que discutível e não será o único ponto de ancoragem possível de uma estratégia de unidade.
Um pequeno papão eleitoral, temo, não assustará ninguém e parece impotente para tantas tarefas que temos pela frente. O que assusta a burguesia que temos de vencer é a esperança e a consciência de classe dos/as trabalhadores/as. E o raio da unidade de esquerda que continua a ser urgente.
Sabem o que é o cúmulo do sectarismo? É o Daniel Oliveira e o Rui Tavares encherem a boca a falar em "unidade da Esquerda" e depois nem eles próprios se conseguem entender. Um está a criar um partido, o outro ameaça fazê-lo depois da Europeias... Há assim tantas divergências que os possam separar? Não seria possível os dois - e os sectores em nome dos quais supostamente têm falado - chegarem a um compromisso comum e formarem, em conjunto, um só partido? Sobra a pergunta «à la Scolari»: "E o sectário sou eu?"
Uma entrevista "patriótica" - "pátria" e "patriotismo", não sendo o mesmo que "nacionalismo", também não são o mesmo que "soberania" ou "soberania popular" - do porta-voz do movimento que quer disputar as eleições europeias, mas que não "pretende ser um novo partido", ainda que saiba que só partidos políticos podem disputar essas eleições. A questão é que, não pretendendo "ser um novo partido", afirma também que "não será por razões jurídicas, com certeza, que isto não avança".
Perceberam, não perceberam?
É claro que um tal "manifesto patriótico", depois de ignorar olimpicamente a força política de Esquerda que mais força política, social e eleitoral tem ganho, o PCP, só poderia ter a ambição de colocar o PS como seu principal interlocutor. Tudo, pasme-se, para tentar evitar que o PS seja o que sempre foi, é e não se perspectiva que deixe de ser: a reserva de boa consciência social do regime que, sempre que necessário, estende a mão, em nome do supremo "interesse nacional", claro está, dos partidos da direita - atente-se, só para recordar o caso mais recente, no acordo de regime incidente sobre a reforma do IRC.
Não são só os partidos que são "instrumentais". A "unidade" e as "convergências" também o são, isto é, representam instrumentos ou plataformas potencialmente mais eficazes, porque mais vastas, aglutinadoras e mobilizadoras, para a execução de um programa político. Portanto, o essencial mesmo é o programa e é em seu torno, e não o contrário, que gravitam todas as outras questões.
Por isso mesmo é que nas próximas eleições Europeias "as convergências" não se podem cingir à consensualização da necessidade da nossa própria unidade ou há rejeição simples da austeridade. Não há como fugir dos problemas. A austeridade é o nosso grande problema, pois é. Mas há forma de a desconstruir ideologicamente e de a combater, em sede de eleições europeias, sem se dar uma resposta clara sobre o modelo de União Europeia defendido - se é que se a defende -, ou sobre a nossa manutenção ou saída do Euro? Dos manifestos espera-se que representem "coligações negativas" onde se diz: "por aqui não vamos". De um partido e de uma lista candidata às Europeias espera-se mais do que isso: exige-se um programa. É essa unidade que é necessária.
Sou da opinião que nestes tempos de barbárie, a esquerda que quer ser esquerda não deve ambicionar menos do que vencer. Juntar milhares de pessoas em torno de ideias, de um programa e de um movimento popular permanente que sustente uma mudança estrutural na relação de forças em Portugal e na Europa. E para isso a disponibilidade para discussões em torno do que une e do que agrega e em torno de uma unidade que sustente uma verdadeira alternativa política é indispensável.
Há neste aspecto uma proposta do Bloco e do PCP de construção das bases para um Governo de Esquerda que tire Portugal da tirania financeira. Há um PS que pelo que defende e tem aplicado não conta nesta equação. Há uma proposta vaga e populista do LIVRE para unir a esquerda sem um programa de esquerda. E há agora o Manifesto 3D.
Não acho que o Manifesto 3D se possa resumir aos seus proponentes. Ele é o espelho de um sentimento que vai ganhando peso na sociedade portuguesa para mudar este estado de coisas. E gosto de muitas das pessoas que propõe o movimento e de muitas das quais o subscreveram. Muitas dessas pessoas sei que são pessoas honestas, com bons princípios e verdadeiramente empenhadas numa mudança de Portugal e da Europa à Esquerda.
Não acho pois que devam de nenhum modo ser hostilizadas. Até porque propõe o mais razoável: uma unidade na que consiga “recusar a submissão passiva de Portugal a uma União Europeia transformada em troika permanente”.
E se acho que a política se faz em torno do programa este manifesto propõe uma linha política clara no seu texto:
««
»»
Nove pontos razoáveis. Mas que por princípio tipificam essencialmente aquilo em que estamos contra. Estamos contra esta União Europeia, a austeridade, o memorando e os resgates (com este ou outro nome), a usurpação do sistema democrático pelo sistema financeiro, as desigualdades e injustiças sociais e económicas e a defesa do Estado Social. É por estarmos contra isso que defendemos o oposto: devolver dignidade ao trabalho, afirmar o carácter público dos sectores estratégicos, erradicar a pobreza, proceder a uma renegociação da dívida.
Mas para juntar e para vencer nestas europeias sabemos que não chega. Há pelo menos quatro pontos fundamentais que o movimento 3D e quem nas suas ideias se sente representado deve responder. Dessas respostas depende a sua vitória. E provavelmente a mudança da relação de forças em Portugal.
Se estivermos de acordo nisto, então acho que temos caminho para fazer em conjunto. Na verdade, construir uma maioria ganhadora em torno deste programa seria provavelmente a mudança mais decisiva na luta dos povos e na luta de classes das últimas décadas.
Não devemos fechar as portas a essa oportunidade.
Não se questionam as boas intenções e a genuína preocupação com a situação da Europa, do País, das classes trabalhadores e da Esquerda que estas movimentações revelam. Por outro lado, também não se questiona que esta pudesse ser uma boa resposta da Esquerda ao seu estado actual de refluxo. O que verdadeiramente me deixa de pé atrás é, uma vez mais, o processo - o processo é, por vezes, bem revelador dos pressupostos materiais e programáticos em que assentam os projectos...
Quer dizer: este neo-sebastianismo redentor da esquerda discutido, preparado, decidido e executado sempre nos corredores, sempre pelas mesmas elites - ou as comissões, políticas ou organizativas, ou as tais "personalidades da vida pública nacional" - que negam autocompreender-se como "vanguarda", mas que se comportam, de facto - ainda que de forma incompetente -, como tal.
No fundo, o que mais me preocupa é a generalização, no «senso comum do povo da esquerda», da ideia de que os nossos problemas têm origem, sobretudo, em conflitos menores de personalidades, na falta de "vontade das direcções partidárias e seus aparelhos em construir a unidade". O problema desse diagnóstico não é apenas a sua incorrecção - melhor dizendo, a sua correcção parcial-, mas sim as consequências da sua assunção junto do "povo de esquerda".
O que divide hoje a esquerda, sobretudo em questões Europeias, não são as "intenções desconexas" dos seus principais dirigentes, mas antes questões políticas de fundo. Será possível construir uma lista unitária de Esquerda que junte Federalistas - como Rui Tavares e muitos sectores próximos do PS-, defensores da saída de Portugal do Euro - como se depreende deste importantíssimo texto do João Rodrigues, Nuno Teles e Alexandre Abreu (já nem falo das dificuldades em integrar o PCP) - e o Bloco que, estagnado no seu abstracto e imperceptível "Europeísmo de Esquerda", se afirma contra o Federalismo e, por enquanto (?), contra a saída do Euro?
Possível é sempre - então com eleições à porta... -, mas não me parece que uma unidade assim alicerçada pudesse subsistir durante muito tempo. É que, convém sempre recordar, a durabilidade dessa unidade, porque inserida num contexto político e ideológico de uma pluralidade complexa, como atrás de notou - não se garante com esta ou com aquela "personalidade federadora".
Acredito e espero que deste importantíssimo debate sairão conclusões, clarificações e ajustamentos à Esquerda. Espero é que surjam não pelas eleições, mas apesar delas.