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A primeira frase desta notícia do DN é todo um programa sobre democracia. Há candidatos “nanicos” e outros com tamanho de gente. A dignidade política, claro, parece reservada a quem, à partida, tinha já todas as condições para vencer.
Os candidatos minoritários “enchem” o ecrã. São distrações incómodas face ao que verdadeiramente interessa e é um alívio desembaraçar-nos deles para depois dedicarmos a nossa atenção ao que supostamente seria importante.
E o próprio debate (aquele entre os candidatos “a sério”) é representado como um “palco de guerra”.
Tudo o que não devia ser uma democracia plena.
Quando a crise no grupo Espírito Santo rebentou, alguma direita apressou-se a divulgar a tese da imensa coragem de Passos Coelho em não emprestar dinheiro dos contribuintes a Ricardo Salgado. Mais, teria sido uma alteração de paradigma na forma como o poder público se relaciona com a banca privada. Uma autêntica revolução silenciosa que se arriscava a passar despercebida pelo ruído provocado pela queda do gigante da economia nacional. Era portanto necessário sussurrar aos quatro ventos a grandiosidade da obra de Passos Coelho tentando evitar o ridículo. Caído o Espírito Santo em desgraça, era urgente pôr em marcha o espírito santo de orelha liberal para disputar terreno sobre o sucedido.
Para tal, era preciso esquecer pormenores: esse «não» surge apenas quando o grupo Espírito Santo estava mais que afundado, tal empréstimo teria sido nada menos que um suicídio político nestas circunstâncias e a suposta não intervenção terá representado um escolher do lado vencedor nas guerras intestinas do grupo. Aliás, sobre os meandros desta decisão e sobre as suas consequências futuras ainda não saberemos da missa a metade.
A rutura de paradigma enfrentou imediatamente revezes. Uma infografia do Expresso lembrava entretanto os mais incautos que este governo é de continuidade no que toca à promiscuidade entre os interesses do BES e os do centrão político nacional. E, claro, quando se conheceu os tons alaranjados da nova administração do BES a tese da mudança de paradigma parecia ter sido enterrada.
Mas eis senão quando José Manuel Fernandes decide ressuscitar o aparente nado morto. Adorador de um livre mercado mais puro que aquilo que alguma vez tenha existido no país e no mundo, Fernandes vê no que sucedeu o exemplo acabado da missão da política e do bom funcionamento do sistema financeiro: faliu quem devia e os mercados funcionaram sem intervenção estatal. Contudo, a narrativa não fica por aqui. JMF, deturpando a natureza da crise internacional, compara a dívida do BES com a do país e aproveita pelo caminho para colar Salgado exclusivamente ao PS (quer pela prática de endividamento acima das suas possibilidades quer pela proximidade política). Teria caído agora em desgraça o Sócrates da finança depois do mesmo ter já acontecido ao Sócrates da política.
A ironia da arte retórica de JMF é utilizar dois casos em que desregulamentação do sector financeiro permitiu atrocidades que estamos/vamos pagar todos (a form como crise financeira internacional afetou aos países da Europa do Sul e a construção estilo castelo de cartas de um banco nacional sobre o crédito fácil e sem grande supervisão) para argumentar a superioridade do neoliberalismo e rejubilar porque o mercado funcionou. Invertam-se os termos do discurso e, de um passos, o neoliberalismo que promove a ditadura financeira não é o problema mas a solução.
A queda do Espírito Santo Salgado surge branqueada numa tese política sem sal mas temperada com um aparente zurzir nos interesses estabelecidos: a culpa seria dos monopólios familiares, da sua promiscuidade com o Estado, dos entraves à concorrência que persistem no país. O ideal do «mercado absolutamente livre» que nunca é suficientemente livre permite encenar uma oposição ao poder vigente por parte da ideologia que melhor o serve. Não deixa de ser interessante que parte da explicação se coloque num terreno que aparentemente seria desvantajoso aos defensores dos interesses capitalistas: o da ideia de um capitalismo nacional que é liberal no palavreado mas dependente do Estado nos negócios. O liberalismo aceita jogar no interior desta contradição aproveitando-a para pugnar por uma fuga para a frente ainda maior face aos tais mercados.
A outra face da mesma moeda é a pequena realidade das falcatruas e das lutas entre fações do capitalismo nacional que se mascara com o engrandecimento do político excecional que, em nome do erário público e apoiado numa ideologia bem intencionada, nega submeter-se ao homem mais poderoso do país. Não fosse tudo isto precisar de se colocar sob a capa de um Passos Coelho super-herói improvável contra os interesses dos capitalistas vilões e passaria mais facilmente...
Crato era o doutor exigência com a missão de exterminar o facilitismo. Era na prova que pretende obrigar os professores a fazer que ia demonstrar o seu excesso de zelo: os professores deveriam ser avaliados uma segunda vez pelos mesmos conteúdos porque a avaliação feita por uma instituição universitária regulada pelo Estado não era suficiente.
Afinal, em vésperas da sua realização, a «prova de avaliação de conhecimentos e capacidades» é amputada da sua componente específica (a que avaliaria os conhecimentos disciplinares necesssários para a realização do seu trabalho) e apenas resiste a componente geral, algo ridículo que só se pode descrever como estando a meio caminho entre uma espécie de PGA e um teste de QI abrutalhado para professores. É um remendo temporário, diz-se, mas é significativo. E é mais uma ocasião para perceber que o discurso da exigência é tantas vezes instrumentalizado por várias outras causas. O que interessa é mesmo realizar a prova e excluir, não o que é avaliado.
A culpa de todos os males da educação era do eduquês vazio de conteúdos disciplinares sérios, não era dr Crato?
O professor de Filosofia Paulo Tunhas escreve um artigo a defender os bombardeamentos e a invasão da Palestina pelo exército israelita na mais recente plataforma panfletária online da direita portuguesa. É sempre interessante confrontar-nos com as estratégias argumentativas e as falácias de um professor de Filosofia (como também já fui mestre desse ofício, sintam-se à vontade para fazer o mesmo comigo). Claro que este artigo não é um tratado de Filosofia. Mas situa o debate numa forma a-histórica e sem contexto social onde alguns pensam que a Filosofia se deve enclausurar para estar mais confortável. Apesar de não estarmos à vontade na planura deste tipo de argumentação, acamparemos por aí. O escopo deste texto é, portanto, limitado, e segue de perto o tipo de argumentos apresentados.
O artigo começa com a acusação de má-fé de quem se oponha às suas teses (será que essa tal má-fé não explicada é a modalidade central de oposição às teses israelitas?) como forma de introduzir um pseudo-pedido de desculpa pela «elaboração do óbvio» que se encena no texto. Começa portanto com um estratagema que não é brilhante (porque é demasiado óbvio na sua artimanha) mas que é significativo do objetivo: todo o bom senso se deveria render ao óbvio israelita, fora dele apenas a má-fé de uns ou a ingenuidade de outros. Aquele que foi um dos pensadores da evidência, apresenta-se agora como profeta do óbvio.
Sublinhe-se que este óbvio segue fielmente a pauta que a embaixadora de Israel em Lisboa, Tzipora Rimon, apresenta num artigo publicado no jornal Público.O óbvio que enaltece o sistema anti-míssel israelita «capaz de identificar e interceptar os mísseis passíveis de atingir centros populacionais», que cria agora uma mitologia sobre os avisos prévios dos bombardeamentos israelitas e a tese de que o Hamas procura, pelo contrário, atingir áreas residenciais israelitas e de que as vítimas dos bombardeamentos são culpa desta organização que usa civis como escudos humanos. Em algumas partes, de tão óbvios, os argumentos do filósofo e os da embaixadora confundem-se ao ponto de parecer cópia. E o que acr escenta Tunhas não aprofunda nem melhora a argumentação. O óbvio enquadra-se afinal numa máquina de propaganda por repetição.
Depois do apelo ao óbvio, Tunhas prossegue com a ilustração com a qual começa a pensar este conflito. A imagem de partida, claro, escolhe-se como início da narrativa e como arrasamento da história: usam-se os detalhes da execução dos adolescentes raptados de forma a ganhar o lado emotivo do leitor. E, seguindo-se o exemplo do assassinato de um adolescente palestiniano por colonos israelitas, tal não surge para aparentar isenção ou mostrar que há violência dos dois lados mas para tentar provar a diferença: o primeiro-ministro israelita «reagiu prontamente, apelidando o acto de “terrorismo”» enquando os palestinianos teriam regozijado sanguinariamente com a morte dos israelitas(segundo os exemplos apresentados e escolhidos a dedo, dos quais se poderia perguntar se são significativos do pensamento palestiniano sobre o tema).
Só que, poder-se-ia também afirmar, a diferença que é mais significativa no que diz respeito ao desenvolvimento do conflito é que o primeiro-ministro israelita que diz não distinguir terrorismos bombardeia e invade a Palestina sob o pretexto de um dos assassinatos mas não bombardeia nem invade os colonatos extremistas israelitas por causa do outro assassinato.
Momento seguinte: o lançamento de rockets que teria «ao mesmo tempo» subido dramaticamente (aqui o óbvio será tão óbvio que não se acompanha de provas, de números ou fontes indepedentes). Repetindo a embaixadora, Tunhas afirma «claro que o muito efectivo sistema de defesa israelita, a Cúpula de Ferro, tem impedido que o número de mortos seja elevado.» O pressuposto de que o exército israelita bombardeia humanitária acompanha-se pelo pressuposto de que o Hamas lança rockets da forma mais assassina possível. Pressuposto que se procura fazer assentar na carta do Hamas de 1987 (não há documentos ou tomadas de posição mais recentes?) e cuja citação apresentada se encontra profusamente na internet como originária de outra fonte.
Dito isto, Tunhas insurge-se contra a «fauna abundante» que defende que Israel «não deveria reagir» (reagir ao quê?), para imediatamente a seguir afirmar: «no fundo, Israel deveria deixar de existir, deveria desistir da sua própria sobrevivência.» Ou seja, esquecendo já os assassinatos que foram apresentados como motivo, Tunhas, como a embaixadora de Israel, passa magicamente da ideia do bombardeio inofensivo do Hamas ao perigo de sobrevivência de Israel. A sobrevivência de Israel é uma justificação também ela desproporcionada.
O momento óbvio seguinte é o que imputa as vítimas civis exclusivamente ao Hamas:
«Se há vítimas civis, isso deve-se, antes de tudo o mais, ao facto de as armas do Hamas e os seus centros de acção se encontrarem propositadamente localizadas no meio de populações civis, ou em mesquitas, hospitais e escolas, e de o Hamas tentar impedir que as pessoas, antecipadamente avisadas dos ataques por Israel, saiam do sítio onde estão, e onde estão também os responsáveis políticos e militares terroristas que dessas pessoas se servem como protecção.» A repetida tese do «aviso prévio» parece ser agora peça central na argumentação dos defensores do exército israelita. Curiosamente, os adeptos recém-convertidos ao «aviso prévio» de ataques não achariam tão humanitários os ataques com aviso prévio feitos pela ETA. E, para além de seletivo, o argumento é claramente falacioso como prova o artigo que responde no Público à embaixadora.
O aviso prévio é uma sms/telefonema enviada aos milhares com três minutos de antecedência. E se quisermos procurar um óbvio alternativo facilmente equacionaremos que é improvável que um exército empenhado em assassinar os dirigentes do Hamas e eliminar os misseis supostamente escondidos avise os alvos antes de os atingir o que tornaria as ações ineficazes.
Este artigo termina originalmente, com as razões que o autor encontra para a «extravagante vontade de acreditar no Hamas» (claro que só se pode partir do princípio que quem levante dúvidas sobre a atuação do Estado israelita estará do lado do Hamas, organização que se acabou de denegrir e que sobre a extravagante vontade de acreditar piamente no exército israelita nada é dito). São cinco razões:
1- «Para além de uma genérica piedade com o sofrimento humano que só pode merecer simpatia e acordo.» Sobre esta razão prévia nada se diz mas sobre ela impende a suspeita de ingenuidade.
2- «Uma certa vocação para Cavaleiro Andante que vem dos sonhos da infância e que não resiste ao apelo do quadro de um David (imaginário) a lutar, quase indefeso, contra um Golias (não menos imaginário).»
3- «Um secreto gosto romântico pela violência, sobretudo pela violência longínqua e “revolucionária”.»
4- «Uma não excessiva consideração pela democracia. Israel é um país democrático, e a democracia não excita (a não ser nos últimos delírios com a “Primavera Árabe”). Para mais, sendo localizada naquela região, Israel estraga a paisagem. Está culturalmente demasiado próxima de nós para poder geograficamente estar onde está. Ao mesmo tempo, é real. De uma certa maneira, precipita-se em Israel, porque Israel vive numa situação-limite, a questão da possibilidade e da sobrevivência da democracia.»
5- «Anti-semitismo. É certamente uma palavra que se deve usar com muito cuidado, mas também aqui, em certas bandas mentais, a coisa entra em jogo.»
Ou seja, desfilam as personagens estereotipadas na cerimónia de encerramento do artigo: dos ingénuos, aos revolucionários de má-fé aliados aos terroristas sanguinários. Já para não falar anti-semita que é lançado de forma aparentemente inocente mesmo no final do artigo, como acusação que fica a pairar sem destinatário conhecido. Destes fantasmas psicológicos de Tunhas que procuram ocupar todo o espaço de quem não louve o comportamento do Estado israelita pouco resistirá a uma análise. Espremidos os fantasmas caricaturais que só serão óbvios para quem lhes pretende dar vida, a única novidade é também um velho argumento destes debates: a imagem utópia da democracia israelita. Mas, entrando por aqui, perde-se facilmente: porque é tudo menos óbvio que um Estado religioso, que depende da ocupação e da expulsão dos habitantes de um território, que sobrevive assente na exclusão dos palestinianos e na força permanente das armas seja um Estado democrático. E parece-me óbvio que será preciso mais esforço intelectual do que a propaganda do costume para quem queira justificar o que se passa agora mesmo em Gaza.
Reparei na proposta de uma coligação entre o PCP, o BE e o MPT feita pelo MAS apenas ao mesmo tempo que na entrevista de Marinho Pinto. Foi uma publicação do Bruno Góis no facebook que me chamou a atenção para o facto.
Nessa entrevista, Marinho e Pinto, melhor que ninguém, encerra o capítulo da recém-avançada proposta do MAS ao reafirmar-se defensor acérrimo do euro e ao disponibilizar-se para se entender com PS ou com PSD para soluções de governo. Mais uma vez, tal como no caso de Fernando Nobre, o ensaio de populismo pretensamente anti-sistema político redunda no momento seguinte num apoio ao que esse mesmo sistema tem de pior.
Contudo, não se trata aqui de contentar-se em criticar a falta de visão política, de viabilidade ou de correção política de uma aliança tão contranatura. O que interessa pensar é a forma como a esquerda se situa face à “crise da política” e, nomeadamente, a possibilidade de resposta a que se pode chamar populismo de esquerda.
Em primeiro lugar, esclareça-se o termo uma vez que não se procura com ele o insulto. Adoto à partida uma “definição mínima” de populismo: chamo aqui populismo ao discurso antipolítica que toma os políticos habitualmente como um grupo homogéneo a condenar sem distinções; que, tornando-os alvos preferenciais, foge às questões sociais; que é fácil porque pretende reproduzir acriticamente um certo senso comum hegemonicamente construído e dominante sem o alterar; que redunda num oportunismo político muitas vezes protagonizado por uma figura “justiceira” que pretende captação de votos e atenção mediática.
Este fenómeno enquadramo-lo, do ponto de vista tradicional da esquerda, na direita apesar de tipicamente este mesmo populismo se esforçar por fugir a esta distinção declarando-a ultrapassada. A reprodução de grande parte destes motivos pela esquerda é aquilo a que chamo populismo de esquerda.
Será justo classificar o MAS como um partido que pratica um populismo de esquerda? Apesar dos próprios certamente não se verem assim, alguns aspetos centrais da sua estratégia de comunicação (os slogans pelos quais se quer tornar conhecido) correspondem a uma tentativa de construir um discurso popular atalhando pelo populismo.
Alguns exemplos:
- “prisão para quem roubou e endividou o país” (slogan justiceiro e ambíguo que não se percebe se quer ou não criminalizar as escolhas políticas, que parece misturar quem roubou com quem endividou através das suas escolhas políticas, para além de contrariar a retórica tradicional ultra-revolucionária confiando às instituições burguesas atualmente existentes a resolução dos problemas políticos);
- “fim dos privilégios dos políticos” (slogan que sendo justo em si, e aliás a esquerda no seu conjunto deveria permanentemente quer propor medidas de fim de privilégios disparatados que existam quer tornar claro na sua prática que não entende a política como uma carreira, acaba por falhar ao, no meio da tempestade da crise, centrar as suas energias nos “políticos” como bodes expiatórios);
- “o euro afunda o país” (o mais político destes slogans peca também pela ausência do conflito social e de classe, sugere o euro como causa da crise e a saída como resolução, por si só, tanto uma como outra não são exclusivas da esquerda).
Aliás, a narrativa que se pode tirar destes cartazes que constituem a presença mais visível deste partido não o colocam claramente à esquerda. Muito menos se pode imaginar que se trata de uma esquerda revolucionária. Tal estratégia política e de comunicação é relativamente nova neste espaço político. Aliás, será uma inovação no campo político da organização internacional a que este partido pertence, a LIT-CI, que na mensagem do último congresso se insurgia contra o eleitoralismo, contra “os atalhos para as massas e a construção do partido”, recordando o legado de Moreno e a sua mensagem de “ser mais operário que nunca, mais marxista e mais internacionalista que nunca” e apelando à proletarização.
Claro que se podem sublinhar outros aspetos da política do MAS que entrem em choque com esta leitura. Não pretendo coloca em causa a filiação claramente esquerdista do partido, apenas sublinho a tensão entre os princípios que o animam, a sua estratégia e a forma de comunicação que elegeu. Creio, aliás, que será desta tensão que terá surgido a extravagante proposta de unidade com o populismo de Marinho e Pinto abrigado num partido claramente conservador como o MPT. E creio, também, que a mensagem de uma esquerda anticapitalista não combina bem com estes atalhos. Substituindo a proposta de unidade de esquerda que era a sua desde a sua criação pela proposta de unidade entre esquerda e fenómenos populistas anti-políticos, este partido fica a perder, confunde-se e confunde.
Mas o MAS interessa aqui na medida em que protagoniza uma forma possível de procurar responder à crise da política que poderá ser sintetizada nas ideias de “combater o inimigo com as suas armas” ou de “não deixar o campo do populismo para a direita”.
Pela minha parte, acredito que é uma ilusão que um partido de esquerda radical deva ocupar o campo do populismo copiando partes do seu discurso tal como é um erro acreditar que consiga concorrer no mercado do populismo uma vez que as suas regras não são apenas ditadas por quem é o melhor no exercício da demagogia mas sobretudo por quem tem acesso a meios mediáticos. A cedência ao populismo constitui uma degradação voluntária da sua mensagem que corresponde a uma admissão de derrota da mensagem tradicional da esquerda (neste caso, a ironia é que um marxismo que se acredita ortodoxo a fazê-lo). Esta degradação pode gerar um discurso duplo entre o que se diz para fora e o que se acredita verdadeiramente dentro do partido. E esta degradação não se limita a desconfiar da capacidade de apresentar a sua mensagem desconfia, em última análise, da capacidade do proletariado de absorvê-la simplificando e imbecilizando. Não é por sermos incapazes de transmitir claramente e de forma compreensível a nossa mensagem que devemos atribuir a culpa ao recetor.
O populismo é tóxico para qualquer mensagem política. E sobretudo para a da esquerda. Como já repetimos, o populismo (e os seus significantes vazios) desvia os alvos (os imigrantes, os políticos, a “Europa” etc. constituem as cortinas de fumo em que se tem envolvido este discurso) quando é mais preciso recentrar a análise no projeto autofágico que a burguesia nacional propõe para o país. Ao pretender-se antipolítico, o populismo não se institui apenas como uma crítica saudável da política dominante mas é um bulldozer que arrasta tudo por igual. Mesmo que à esquerda possa haver quem diga que “os políticos são os outros”, acabará enredado na teia da política. Os políticos somos sempre nós do ponto de vista dos outros. E a diferença não se pode reclamar repetindo este tipo de discurso, apenas a partir de outra prática…
O populismo é também tóxico por outra coisa: é volátil, navega à vista das emoções do momento que procura espicaçar ao mesmo tempo que seguir. Começando a política por ele arriscamo-nos a começar a construir dentro do pântano.
O equívoco que parece estar na base desta proposta é o de tomar o senso comum despolitizado, que é já resultado das lutas de classes, de forma linear como revolucionário. A ele responde, diga-se, um equívoco simétrico que remete para uma resposta à crise da política também ela errada: a que aceita essa expulsão como um dado inultrapassável e que faz somente política institucionalizada já não conseguindo dialogar com quem sente a crise da política. Há quem tenha desistido de quem desistiu da política e quem desista da política cedendo à mensagem implícita no discurso da desistência.
A crise da política é, não só mas também, uma forma de dispersão e de exclusão da política dos descontentes que se veem afinal encurralados num discurso político populista que muitas vezes se reterritorializa das formas mais diversas na política dominante. Este descontentamento tem potencialidades criativas ou destruidoras, como é óbvio. Há que trabalhar na contradição percebendo aquilo a que Gramsci chamava “núcleo são” do senso comum. Mas não nos podemos resignar a reproduzir o discurso nos termos em que ele é feito para nos derrotar. Isso é, para continuar a linguagem gramsciana, batalhar pela hegemonia. Claro que as dificuldades (imensas) do campo popular não se podem resolver com uma estratégia de comunicação populista. Não há atalhos populistas para o enraizamento popular.
A velha música de Cartola não era banda sonora. A leitura fez-se no silêncio. E, contudo, os seus versos insinuavam-se obstinadamente:
«Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.»
O samba não era apenas o ritmo da distração ou da incapacidade de concentração. Mas a música também não se encaixava diretamente no que se lia. Se o pessimismo da letra de Cartola nos lembra que o mundo é um moinho, o livro do João Carlos Louçã (Call Centers, Trabalho, Domesticação e Resistências, Deriva Editores, 2014) traz-nos outra imagem: a do mundo do trabalho contemporâneo como um call center. Nele é todo o consenso dominante sobre o trabalho e os seus modos de organização que se encontram dissecados lucidamente: precariedade, produtivismo absurdo, controlo asfixiante de ritmos e espaços, normalização de procedimentos, avaliações como forma de poder discricionário, subversão por cima de elementos basilares das tradicionais relações de trabalho como o horário, o salário ou o contrato, imposição das ideologias do sucesso, da competição e do falso espírito de grupo ao mesmo tempo da atomização e do estilhaçar da consciência de classe.
Sob a forma da «modernidade regressiva», o mundo é um call center que nos vende a naturalização da nossa exploração. O call center é, assim, o símbolo da destruição de direitos e um barómetro das mudanças no trabalho nas últimas décadas. O João Carlos consegue juntar o enquadramento teórico-político com a análise empírica produzindo um documento importante para se pensar a precariedade em Portugal.
Mas talvez a canção tivesse razão em insistir. Talvez tenha insistido porque afinal o call center é igualmente um moinho no sentido de ter a força para triturar os sonhos da intermitência permanente das vidas precárias. Este livro dá voz às perceções para além dos sonhos triturados e às ilusões persistentes de quem trabalha num call center mas mostra ainda o call center como lugar de resistências improváveis, dos micro-boicotes a outras formas de «luta de classes de baixa intensidade» nas quais se combate ingloriamente contra um «patrão invisível».
Serão importantes ou viáveis? A pequenez invisível do gigantismo patronal que não tem respeito pelas vidas que esmaga tem força desproporcional face à «identidade frágil» nanizada a golpes de falsa motivação e de verdadeira desvalorização do trabalhador.
Gigante ou moinho? Fará diferença? Lutar nestas circunstâncias será apenas quixotismo?
Um novo embate entre a música e o livro impõe uma escolha. Hoje, estando como estamos à beira do abismo coletivo, para que não herdemos dos nossos amores e das nossas lutas só o cinismo, é preciso preferir o optimismo da vontade transformadora que arrisca que outro trabalho é possível à contemplação pessimista dos sonhos triturados.
E o João Carlos lembra-nos das forças que temos para além dos Quixotes:
«Rocinante e Sancho Pança sabem que são eles que permitem as investidas contra os moinhos de vento, mesmo quando é o fidalgo alucinado que mantém a atitude altiva e, no seu delírio, acumula glórias. Até um dia que resolvam deixar de o fazer.»
Ainda que o mundo seja um moinho é importante lembrar que os sonhos triturados são os de Sancho Pança e de Rocinante e que a engrenagem se alimenta desses sonhos que cria e destrói. Mesmo que não se vejam falsos gigantes mas verdadeiros moinhos, com toda a consistência da pedra, há que escolhar embater contra eles. Porque nós, nós, os pequenos, com a consciência de que só nos agigantamos quando somos todos do mesmo tamanho conseguimos cavar bem mais do que um abismo com os nossos pés.
E quem diz que os sonhos triturados não se podem semear?
A nostalgia é uma força tramada em política. Já a vi torturar quem passou fome no fascismo ao ponto de acabar por confessá-lo como o melhor tempo da sua vida. Já a vi seduzir o reacionário assumido ao ponto de celebrar a radicalidade do PREC como a sua experiência mais intensa e marcante.
Apesar disto, sei que a normalização do comportamento a partir do fragmento da memória não é simétrica ao potencial transformador da lembrança da prática revolucionária passada. A nostalgia enche facilmente de conservadorismo mas tem tendência a envolver a revolução numa névoa não actualizável: «era tão bonito», «foi um sonho», «são coisas da idade».
Sei que, por trás de tudo isto, é a maravilha da juventude desejada que esconde um tempo em que tudo era simples. Na ilusão de perspetiva, antes era sempre simples e agora é tão complicado.
Conheço também o poder da reescrita hegemónica das memórias, os arredondamentos que limam de forma selvagem todas as arestas que não adaptam à narrativa repetida constantemente.
Sei que começo a entrar na idade perigosa em que a nostalgia é capaz de irromper de repente com todo o seu poder encantatório.
Sei que vivo numa geografia perigosa que muitos quiseram transformar no país da saudade. Não me pretendo desculpar com os males da idade ou do país.
E, contudo, dei comigo a sucumbir-lhe, a pensar num tempo em que a militância era alegria, em que fazíamos política lado a lado e nem pensávamos que fosse possível fazê-la de cima para baixo de tal modo as verticalidades não se encaixavam no que construíamos. Um tempo em que a divergência era a naturalidade da inteligência e da criatividade a dialogar e não o sinal de uma agenda obscura infiltrada ou a ameaça de uma traição em potência. Ali onde a desconfiança não podia ser regra e o sectarismo parecia tão longe. Onde se fazia porque se sentia que se devia fazer sem a razão cínica do calculismo.
Terá existido? Se não, poder-se-á ainda inventar?
Sei dos efeitos perniciosos. Sei que ficar deslumbrado com esse passado é meio caminho andado para a desilusão com o presente e assim ficar paralisado face aos impasses futuros. Sei que, por outro lado, se pode fazer da fraqueza força e que é preciso projetar para o futuro esse saber-fazer (im)possível da militância-revolução. Ou, escrevendo-o ainda mais como um cliché, pode ser que se consiga usar a nostalgia para ter saudades do futuro reinventando o que é urgente.
Ombro a ombro, solidariedade vivida num alter-quotidiano molecularmente resistente à força dos destinos sociais que nos querem impor. Sem se fechar numa conchinha com os que nos parecem ser mais iguais. Irreal por irreal, ao menos que a nostalgia se desalinhave em utopia e seja o nome de uma prática militante permanentemente em ebulição e não de um austero destino final.
O economista brilhante apresenta a sua lógica incontestavelmente científica: o país já era pobre e fingia que era rico. Agora, com a crise, finge que empobreceu. A crise é afinal a história de um estranho país que é um fingidor. E que chega a sentir que é fome a fome que deveras sente.
A este movimento chama Bento "empobrecimento aparente”. E quando explica que "o país empobreceu menos do que parece" a frase soa parecida com aquela outra que dizia que "a vida das pessoas não está melhor mas a vida do país está muito melhor."
Falar neste "país", nesta "economia", neste "crescimento", ora aí está a política do fingimento que se agarra às abstrações pseudo-científicas. A pobreza que não é aparente, que não é fingimento, que é real, que dói mesmo, essa terá de encontrar uma outra linguagem.
De manhã à tarde, apresentavam-nos repetidamente casos edificantes de doentes que eram felizes apenas pelo poder do pensamento positivo. Pela noite, especializaram-se nos casos edificantes de pobres que tinham triunfado exclusivamente porque o seu pensamento positivo tinha dado a volta a todos os problemas.
O pensamento positivo tornara-se então omnipresente. Quem não partilhasse desse consenso mole decerto sofreria de algum problema. Deveria pois consultar um dos vários especialistas na matéria. E se não o fizesse mereceria ser condenado a que o mundo lhe caísse em cima por crime de velhodorestelianismo.
Por outro lado, quem o partilhasse mas não tivesse tido os resultados esperados, deveria acreditar com mais força e, se depois disso continuasse a falhar, deveria acreditar ainda com mais força. Se não o conseguisse fazer, claro, encontraria os especialistas prontos a intervir.
O lado negro do pensamento positivo lançava um manto de culpa e difundia um sentimento de que estaríamos errados por nossa culpa. Nunca dávamos ao positivismo tanto quanto ele exigia. No livre mercado do positivismo ficávamos sempre a perder. E seria cada vez mais urgente abraçar a sua normalização brutal e totalitária.
Mas não lhe chamavam ideologia.
1- Filosofia do conhecimento: "uma reestruturação da dívida sem uma auditoria é cega assim como uma auditoria sem uma reestruturação é vazia".
2- Ética: "assina sempre um manifesto como se o seu conteúdo se pudesse tornar lei universal num governo de esquerda".
3- Revolução copernicana: "até agora supôs-se que toda a nossa política tinha de se regular por objetos políticos como a «reestruturação da dívida» ou o «governo de esquerda» porém todas as tentativas de o fazer fracassaram. Por isso, tente-se ver se não progredimos melhor admitindo que os objetos têm de se regular pelo sujeito político, o proletariado."
Repetir 70 vezes: a condição de possibilidade de uma política de esquerda (e de uma reestruturação da dívida) é o controlo político democrático do proletariado.
Já velhinho, Paulo entrou naquela sala há tanto esquecida. Lá bem no centro, apenas estava o relógio antigo que marcava a contagem regressiva para o glorioso dia da independência nacional. A espera compensara finalmente. Só era pena que agora... Paulo travou de imediato aquele pensamento duvidoso. Não era tempo disso mas de celebrar a vitória!