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da catarse, da encenação, do vazio

por pedro pereira neto, em 06.03.14

Disclaimer: estou a escrever este post às 21h50. Correndo o risco de ser desmentido pelos factos, é importante deixar registada a minha opinião neste momento sobre os eventos em curso no espaço em frente à Assembleia de República, onde decorre uma "manifestação" de forças de segurança.

 

Escrevi "manifestação", entre aspas, conscientemente. Porquê? Porque mesmo respeitando a raíz da palavra - manifestar, ou seja, tornar do conhecimento de outrém, ou dar de conta de algo - a verdade é que os eventos em curso não me parecem mais que uma gigantesca catarse, praticada por pessoas a quem a verdadeira mudança, e sobretudo os comportamentos que poderiam suscitá-la, não parecem interessar realmente. Afirmo isto por diversas razões.

 

Primeiro, por mover os manifestantes a intenção de obrigar os legisladores a alterar alguma da legislação que afectou as forças de segurança em Portugal. "Manifestar", nesse sentido, significa comunicar ou dar conhecimento a esses legisladores da insatisfação dessas forças de segurança. A pergunta que impõe fazer, neste caso, é a seguinte: os legisladores não dispunham dessa informação? Obviamente que dispunham. Desse ponto de vista, uma "manifestação" não serve, então, o propósito de comunicar algo, mas sim o de associar a esse conhecimento que é dado a outrém o argumento do número dos insatisfeitos, assim tornado visível nas ruas. E a dimensão desse número, usada como factor de coacção, poderia suscitar o cumprimento da intenção dos que se "manifestam", ou seja, que a legislação que os afecta seja alterada.

 

Tudo isto foi feito em Novembro. Estamos, hoje, Março. Para hoje foi marcada nova "manifestação". Esta é a minha segunda razão para usar esta expressão entre aspas. Porquê? Por se tratar da segunda vez que tal "manifestação" tem lugar exactamente no mesmo sítio, e exactamente com o mesmo conjunto de intenções. Que são, recordemo-lo, dar conhecimento de insatisfação, e dar visibilidade ao número dos insatisfeitos.

 

Volto a perguntar: não dispunham os legisladores dessa informação, isto é, de que existe insatisfação, e de que ela provém de um número significativo de elementos das forças de segurança? Obviamente que sim. Então, serve para quê, esta "manifestação"? É, simultaneamente, uma catarse e uma mordaça. Cria uma válvula de escape para a insatisfação, contendo-a num formato e sob uma liderança considerados de perigo menor, e de potencial real de transformação absolutamente nulo.

 

Não há novidade resultante desta "manifestação". Quem precisava de saber da insatisfaçao e do número dos insatisfeitos já o sabia. Repetir a "manifestação" é não apenas redundante mas amordaça outras formas de protesto - elas, sim, com outro potencial de influência e de transformação da prática dos legisladores. Não é preciso identificá-las, bastando apenas salientar que colocariam em risco determinados aspectos da vida dos próprios que consideram garantidos e acima de qualquer consequência da sua acção, independentemente daqueles sobre quem ela pesa.

 

Podemos questionar se é legítimo passar para essas formas de acção menos convencionais. A resposta a essa pergunta varia: mas podemos começar por devolver a pergunta, questionando a convencionalidade da violência que a legislação dos últimos três anos tem constituído sobre a vida da maior parte da população. Não creio que seja possível ser violentado para lá do que é tolerável à luz da Democracia, mas depois alegá-la para justificar a mordaça colocada sobre as formas de protesto que deviam corresponder a essa violência original. Sobretudo quando ela, essa violência original, é praticada por pessoas que não respeitam nem cumprem a Constituição que enquadra essa Democracia que usam como escudo. Não podemos furar as regras, e depois clamar pelo cumprimento delas quando isso nos é conveniente.

 

A dimensão catártica desta "manifestação" é ainda visível na absoluta ausência de preparação ou de estratégia para, hoje, produzir qualquer mudança política significativa. É possível dizer que um elemento de uma força de segurança, que jura fidelidade a um país e às suas leis, nunca deixa realmente de sê-lo, mesmo quando protesta, creio que a questão é mais funda, e radica precisamente na real ausência de intenção na produção genuína dessa mudança - e nisso são, deprimentemente, portugueses, feitos daquela portugalidade que prefere colher o benefício sem ter o trabalho, e que prefere que a História o bafeje com o sacrifício alheio. Mas é importante ir mais longe, e assumir que essa mudança nunca foi intenção desta "manifestação".

 

Porquê? Porque ninguém avança para uma manifestação a sério sem duas coisas, e nenhuma delas foi visível até este momento, 21h50: um conjunto claro de reivindicações, com calendário definido e medidas sancionatórias do seu incumprimento; e uma estratégia clara de demonstração de poder de transformação da realidade política do país, traduzida numa estratégia de tomada efectiva não apenas da escadaria mas do edifício. Quem, objetivamente, quer conseguir algo através de meios humanos, ou seja, de colectivos de pessoas, não concentra esforços de tomada de um espaço apenas na frente do mesmo, como tem sido visivel esta noite. Se a ideia é contornar as forças que protegem o edifício, parece-me claro que as forças de segurança em protesto têm formação suficiente para gizar um plano que o permita, e o qual passava por criar diversos focos de tensão, espartilhando aqueles que protegem o espaço ao ponto de serem incapazes de assegurar essa protecção. O que vemos até este momento? Meia dúzia de pessoas, todas concentradas no mesmo sítio, "aparentemente" a tentar "furar" uma barreira policial. Sejamos sérios: há matinés de miudos em discotecas da cidade de Lisboa onde a intenção de furar uma barreira de pessoas é mais consequente.

 

Tudo isto parece demasiado encenado para ser levado a sério. É um "protestozinho", um "agarrem-me senão vou ali" demasiado impreparado (para não dizer premeditadamente impreparado) para ser tomado como uma tentativa de transformação real de algo. Sobretudo de um algo cujo alcance continua a ser defendido como possível através do "diálogo", como se, três anos depois de conversa, os legisladores "dialogantes" não tivessem tido já oportunidade de tornar consequente esse diálogo. Não o foi até agora. Não foi por falta de diálogo, mas de intenção. E querer continuar a resolver as coisas com diálogo é a materialização acabada de que a transformação real não é objectivo de qualquer das partes envolvidas, mas sim a criação de uma catarse colectiva, que vá esfumando aos poucos até a mais renitente das fibras de indignação nacional. Das tais de que vamos tendo cada vez menos exemplos.

 

Até a forma como uma mera recepção por parte da Presidente da Assembleia da República, com a promessa de "levar" as "reivindicações" aos grupos parlamentares - como se eles as desconhecessem ainda... - é suficiente para dar por encerrado o circo. A mesma pessoa que parece só ter lido um livro e conhecer uma citação, que considera a casa da Democracia demasiado boa para aqueles e aquelas em cujas costas ela está apoiada, "promete" agir como a DHL do protesto securitário, e eis que toda a "manifestação" parece ter cumprido o seu grande objectivo: alguém do mesmo partido do Governo, que não consegue esconder que a ele ainda pertence em praticamente tudo o que faz, vai levar ao... Governo uma informação que ele... já tem.

 

É isto, a "democracia" e a "manifestação" em Portugal, em 2014: este imenso monte de nada, que estranhamente nos deixa satisfeita a barriga da honra. Vemos a encenação dela, e como bons telespectadores que somos da nossa própria vida, enternecemo-nos com mais uma valentissima demonstração de coisa nenhuma. Somos, definitivamente, os maiores. Já o dizia Vitor Gaspar.

 

Fiquemos todos, pois, a aguardar a próxima "manifestação". Aquela em que alguém vai dizer a outra pessoa o que ela já sabe, finda a qual ameaça que, proximamente, pode ter de vir dize-lo outra vez.

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publicado às 22:29

Do bullying intelectual

por pedro pereira neto, em 30.12.13

Há pessoas a quem o benefício da dúvida parece já demasiado lisonjeiro. E a paciência, essa virtude benigna que deve subjazer-lhe, não é infinitamente elástica.

Vem tudo isto a propósito de algumas afimações que vou lendo, semeadas pelas redes sociais, exactamete da forma que Moreira de Sá há semanas descrevia. Segundo essas ilustres formas de propaganda, existe uma espécie mágica de "números da economia", segundo os quais o desemprego estaria a descer, o PIB estaria a crescer, as exportações estariam a subir, e a balança comercial seria excedentária como nunca na história de Portugal.

A primeira resposta que me ocorre a essas afirmações é, na realidade, uma pergunta: a pessoa injecta ou inala?

A segunda resposta que apetece dar presumo algum domínio mínimo de Geografia: "o senhor sabe que Portugal não é a Alemanha, certo? Eu sei que, na prática, em termos de economia, somos todos cada vez mais objecto da política financeira alemã, mas não lhe parece que está a ser demasiado explícito na sua adoração?"

Irrita-me isto porquê? Porque é desonesto. Porque é desonesto e porque preda a ignorância de demasiados portugueses e portuguesas. Porque é uma espécie de esperteza saloia que, como todas as expertezas saloias, tenta passar por inteligência à força da sua repetição e do silêncio daqueles que não toleram o bullying intelectual. Nunca fui muito bom a aturar essas coisas. Não estou a ficar melhor nisso com a idade.

Vamos por partes:

- desemprego a descer? A sério? Agora o desaparecimento de inscritos nos centros de emprego é "desemprego a descer"? Pessoas que deixam de procurar emprego em centros cujo nome é, em si, uma falácia? Que já nem chamados são? Nem o INE compra essa fantasia, e até costuma comprar algumas e facilitar outras, com timings providenciais;

- as exportações sobem? Muito interessante: quando a redução dos salários em Portugal torna o custo de produção mais baixo, e imputa ao intermediário e ao consumidor final valores mais baixos, é natural que as exportações subam; costuma funcionar no Bangladesh, mas até ao momento a intenção de nos equiparar a esse mercado pulsante de modernidade não foi (ainda) assumida explicitamente;

- balança comercial excedente? Não tendo a população dinheiro para importar, não obtendo as empresas crédito algum na banca que ajudaram também a salvar, e subindo as exportações à custa da redução da massa salarial, é natural que a balança mude, não? Se instituissemos a escravatura ainda melhorava mais.

Uma maioria do PSD já se apercebeu do logro. Ser enxovalhado publicamente pelas principais figuras da Economia no PSD deveria ser suficiente para estes arautos das "boas notícias" guardarem a viola no saco. Aparentemente, não. Há numa certa direita esta coisa curiosa: só acordam para a enchente quando a maré entra na cozinha. Aí, o que era radical seis meses antes passa a ser o discurso dominante. Mas com o prato vazio dos outros lidamos sempre bem. Enfim. "Viva Vichy", parece, na cabeça de alguns.

Não é de hoje que é descarado um certo colaboracionismo em algumas doutas figuras do jornalismo económico. Fazem parte do ambiente que reescreve permanentemente o presente, suspeito, com intenção implicita (e por vezes nem isso) de apresentar serviço para beneficio futuro. Até programas de governo alguns já escrevem. Deveriamos exportar esse filão, de tão talentoso.

E é grave que assim seja: privada de media que seja reflexo (ainda que reconstruído) da realidade, uma parte demasiado grande da cidadania fica completamente à mercê do discurso normativo do Governo (deste ou de outro). Considero a hipotese de oferecer alguns pins partidários a algumas dessas figuras: sempre era mais honesto.

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publicado às 02:32

Do empreendedorismo desaproveitado

por pedro pereira neto, em 18.12.13

Tive a profunda infelicidade de cruzar-me, por intermédio de um contacto meu, com um post daquela fígura impar da nacional-legislatice chamada Duarte Marques. Não satisfeito de ter levado o bigode da década por parte da Ana Drago, vem hoje tentar encantar mais alguma da juventude social-democrata feminina, certamente ávida de herois e de futuros suspeitos de violência doméstica, afirmando a propósito de um dos manifestantes nos protestos de hoje, o Miguel Reis, que (e cito)

"Porque será que são sempre os mesmos? Cá está o Miguel Reis outra vez. Eu quando apareço digo que sou do PSD, estes tipos do Bloco de Esquerda ou do PCP escondem sempre a filiação. Cá está o Miguel, habitué destas coisas. Invasões, manifs e interrupção de conferências. Tudo teatro bem montado. Este na foto já é mais conhecido que a Catarina Martins do BE"

Comecei por tentar ser leve na resposta, até por me parecer que um discurso elaborado falharia claramente o objectivo de tornar-se útil a Duarte Marques. Desse modo, e ainda num tom construtivo e conciliatório, expliquei que muitas pessoas no próprio PSD preferiam que pessoas como Duarte Marques não se afirmassem do PSD, dado existirem limites para o que podemos considerar "boa publicidade" vinda da "má publicidade".

Contudo, firmemente convicto - como sempre nos tornamos quando nos habituamos à adulação da audiência típica das fábricas de condicionamento mental a que chamamos juventudes partidárias - da sua (vamos chamar-lhe assim) "razão", Duarte Marques entendeu responder a uma outra crítica à sua legitimidade para exercer o cargo de deputado que a todos nos custa o que custa, em que era questionado directamente sobre uma eventual prova de acesso que tenha feito para esse exercício. Respondeu o seguinte:

"não maior prova que aprovação em democracia, pela voz do povo que tantos fingem representar. Por outro lado, o que está aqui em questão não é a prova. Eu próprio considero que a solução poderia ser outra. A questão é o comportamento anti-democrático daqueles que impedem os outros de fazer a prova, daqueles que impedem de trabalhar quem não quer fazer greve. Isso não é respeitar a liberdade".

Muito bem. Ainda que eu tenha toda a consideraçao pelos défices cognitivos dos outros, e me mova a maior compaixão por todos aqueles a quem a constante adulação acrítica convenceu de talentos inexistentes, há duas notas que entendi fazer, e que dirigi directamente a Duarte Marques, como devemos fazer sempre que algo na conduta dos outros nos incomoda:

- não requer particular elaboração compreender que o fenomeno eleitoral em portugal, sobretudo em partidos catch-all como o PSD pretende ser, inclui dinamicas de protesto (o mesmo de que acusam cronicamente o BE) ao ser apresentado como "alternativa a Sócrates", e inclui dinamicas de voto por hábito. A qualquer uma destas duas práticas o conhecimento dos elementos constantes de uma lista, como é o caso de Duarte Marques, é nulo. Logo, a sua legimitidade enquanto "aprovação em democracia" é, basicamente, nula. A menos que estivessemos em processos eleitorais no formato dos circulos uninominais, é um argumento falho de verdade (e de inteligencia) dizer-se representante de pessoas que, objectivamente, não o conhecem e não fizeram por escolhe-lo directamente.

- se é anti-democrática a conduta que impede ou previne outrém de agir, calculo que tenha de afirmar-se pela liberdade da população portuguesa cuja vida diária passou a excluir diversas actividades por acção consciente e premeditada do governo. No mesmo plano está usar o resultado de uma prova imbecil (com questões absolutamente absurdas para a aferição da competencia pedagogica, como uma soma de merceeiro) para impedir o acesso à profissão das mesmas pessoas a quem a entrada nos quadros já é uma miragem por acção ou conivencia legislativa social-democrata. Questão de pura lógica.

Portanto, como o Duarte escreveu tentando ser tão eloquente como um slogan de produtos para a higiene intima, o que o governo faz "não é respeitar a liberdade". Fico, pois, a aguardar o seu grito de Ipiranga. Afirme-se, Duarte: afirme-se. Ou então seja empreendedor, siga a sugestão do seu lider, e aproveite a oportunidade da migração para nos beneficiar com a sua ausencia.

E pronto, era só isto.

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publicado às 17:05

Da herança

por pedro pereira neto, em 14.12.13

Acabei há minutos de assistir ao filme Hannah Arendt, e se tinha já ficado a matutar aquando de algumas passagens do filme, o seu termo aprofundou esses pensamentos. Antes de fazer a sua apresentação e discussão devo, todavia, deixar bem claras algumas coisas.

 

Em primeiro lugar, a análise que farei é exclusivamente isso, uma análise. Tem uma intenção reflexiva e não uma intenção programática.

 

Segundo, ainda que a minha própria ideologia seja – como sempre deve ser – alheia ao sentido da análise feita eaos seus méritos, é importante, antes de suscitar no leitor qualquer interpretação mais delirante, afirmar-me de Esquerda, pelo que nada do que escreveu deve ser entendido como qualquer elogio

 

Finalmente, que as comparações que traçarei na análise têm bem presentes a diferente escala e amplitude dos contextos comparados, o que significa que estou a comparar mecanismos e modos de pensamento, e não qualquer plano ou horizonte politico-militar e civilizacional.

 

Colocadas estas ressalvas, o que me fica da experiência deste filme e, mais importante, do conteúdo do trabalho de Hannah Arendt relativamente à figura de Eichmann e do seu lugar na História? Duas notas.

 

A primeira nota prende-se com a natureza da argumentação de defesa apresentada por Eichmann: que qualquer juízo moral associável à sua conduta não o assistiu durante a mesma (ou não foi, pelo menos, o principal contributo para essa conduta) uma vez que toda ela decorreu do estrito cumprimento de um mandato hierárquico, adquirido aquando do seu juramento ao regime, às suas prerrogativas, e ao seu líder. Esta argumentação é profundamente weberiana: de um lado, a expressão absoluta – ainda que absurda – de uma racionalidade instrumental levada ao seu extremo (o cumprimento de uma ordem hierárquica assim de qualquer juízo de valor, de natureza moral ou outra); de outro, a adesão ao carisma do líder, a cuja instrução não se opõe qualquer resistência.

 

 Por diversas vezes ao longo do filme me ocorreram paralelos com a actual situação da Europa, e com o exercício da gestão moderna feita por uma classe política plenamente convencida da superioridade e infalibilidade dos seus critérios de racionalidade matemática. A todos, num ou noutro momento, foi possível ouvir argumentações de defesa face ao descalabro resultante da sua acção muito próximas das utilizadas por Eichmann: cumprem ordens, ou antes, limitam-se a executar programas inevitáveis, aos quais qualquer juízo de valor moral é absolutamente estranho. Também colocados perante a consequência dos seus processos de decisão é possível escutar a este ou aquele líder – eleito com base num tipo semelhante de carisma àquele que levou uma significativa parte da população alemã a eleger Hitler – que a sua responsabilidade termina onde o seu contributo também terminam, e que tudo o que são consequências finais de um processo onde foram apenas uma das partes não devem, portanto, ser-lhes imputadas. Não comandam a máquina, apenas constituem uma das suas peças, pode interpretar-se. Curioso que o digam, num meio político pejado de especialistas em Direito, onde qualquer um poderia rapidamente dizer que se é co-responsável por um crime mesmo não se sendo aquele que prime o gatilho.

 

A segunda nota prende-se com a conclusão a que chega Arendt, relativamente à negação da identidade própria em que assentou parte da defesa de Eichmann, e ao lugar decisivo que esta atribuiu ao pensamento como base estruturante dessa identidade. Segundo a autora, negando-se a pensar, o indivíduo nega a sua identidade enquanto ser, excluindo-se desta e dos critérios que se lhe aplicam. Não se é humano se não se pensar ou não se decidir algo a partir desse pensamento. E não se tendo pensado não é possível assumir a responsabilidade de actos irreflectidos que não praticámos.

 

Aquando desta argumentação pensei imediatamente no comportamento de boa parte dos nossos cidadãos e das nossas cidadãs. De como, com frequência, se excluem de pensar a Política, como se a exclusão de pensar a Política não fosse, também ela, um acto político. Mas mais importante que isso, é a negação do pensamento sobre um assunto utilizada como estratégia de desresponsabilização da consequência dos processos dos quais, tendo-nos excluído, queremos ser isentados: “não pensei, não agi, a culpa de quem agiu não pode ser minha, que nada fiz”. Em certa medida, todo aquele que se exclui de participar activamente – pois que excluirmo-nos é uma forma de participação negativa – em processos de natureza política utiliza uma argumentação muito próxima à de Eichmann. E nem abrirei o flanco de debate sobre a profunda incoerência e hipocrisia que constitui o facto de nos (pretensamente) nos excluirmos dessa forma do processo mas reservarmo-nos o direito a usufruir dos direitos conferidos por esse mesmo mundo do qual tentamos excluir-nos.

 

Sem prejuízo da herança weberiana a que fiz já referência, e que enquadra em grande medida o mundo em que vivemos desde o século XiX, ambas as notas podem conduzir-nos a uma assustadora conclusão: em mais do que nos é confortável admitir, a forma como vivemos é, em alguma medida, uma herança de um pensamento racional instrumental de que o nazismo foi a mais negra das concretizações. Os exercícios de desresponsabilização em que incorremos com frequência, seja por inserção estrutural numa qualquer organização burocrática, seja por negação da nossa existência enquanto ser pensante, constituem uma espécie de triunfo post mortem do nazismo: quando as coisas correm mal, a culpa é das ordens que seguimos ou, plano B sempre à mão, não pensámos, e não tendo pensado, não pode ser-nos atribuída qualquer culpa. A dita, nestas coisas, quando não é solteira, é casada com outro.


Talvez, à distância - e é com grande pesar e preocupação que chego a essa conclusão - o nazismo tenha deixado mais sementes no nosso imaginário do que estamos dispostos a admitir. Olhando a política interna israelita, por exemplo, é difícil não chegar a essa conclusão. E pensando na conduta absolutamente irresponsável e criminosa de demasiados políticos, banqueiros de investimento, e especialistas em Direito, parecemos viver efectivamente num mundo de negação constante, e de dano contínuo das vidas daqueles a quem nos separa não apenas a distância e o grau de riqueza, mas a própria humanidade.

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publicado às 23:23




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