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Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (Art.º 65º da Constituição da República Portuguesa)
Esta foi, desde o início, a reivindicação que esteve na base da luta contra as demolições e despejos forçados promovidos desde 2012 no Bairro de Santa Filomena, pela Câmara Municipal da Amadora. A gravidade da situação foi mais que denunciada: cerca de 40% dos e das moradoras de Santa Filomena estão excluídas de um Programa Especial de Realojamento (PER) de 1993, com mais 20 anos e, por isso, completamente obsoleto no seu recenseamento.
A solução menos onerosa para o erário público seria muito simples: suspender as demolições. Cada casa que a CMA destrói envolve a mobilização de recursos públicos - técnicos sociais, fiscais, polícias ou até bulldozers... - que poderiam ser usados de outra forma e com outros objectivos. Mais ainda: cada casa que a CMA destrói é um problema social, humano e económico criado. É que as casas podem ser destruídas, mas as pessoas não deixam de existir, assim como a sua necessidade e, sublinhe-se, o seu direito a ter um tecto digno.
Ora, o contra-senso disto tudo levanta a questão: porque razão a CMA insiste em seguir esta política desumana e irresponsável de urbicídio? Desconhecendo-se planos municipais para aqueles terrenos e sabendo-se que não são públicos, mas antes geridos por uma das maiores sociedades gestoras de fundos investimento do mercado, inserindo-se num fundo cuja missão visa a criação de "condições de rentabilidade, segurança e liquidez" a questão ganha contornos ainda mais inquietantes, confirmando que, neste mundinho em que vivemos, o lucro vai pesando mais do que as pessoas.
Ainda que com contornos específicos, o caso de Santa Filomena não é o único, antes se insere numa tendência mais generalizada, em múltiplas escalas, de mercantilização do território e, em particular, da habitação. Ou será que caiu no esquecimento o que despoletou da crise financeira de 2008? E será que alguém terá dúvidas sobre quem tirará realmente proveito da liberalização do mercado de arrendamento? E perqgunte-se: como estarão a ser geridas muitas das situações de crédito de mal parado geradas pelo aumento do desemprego e da diminuição de salários e pensões?
A invocação lançada na Igreja Matriz da Amadora, em nome de velhos valores da dignidade humana, não podia ser mais actual e universal: as nossas casas não são os vossos casinos!
publicado originalmente em habita.info
Retomo* o post onde argumentei, a propósito da unidade da esquerda, que no aplanar das diferenças está a nossa fraqueza, não a nossa força e identifiquei algumas contradições que atravessam política partidária e os movimentos sociais. Abordo agora outras dessas contradições: o nacional e o internacional; o crescimento e a ecologia; o trabalho e a vida; a resistência e a transformação.
O nacional e o internacional
O Estado nacional foi, mesmo considerando as formas contraditórias que assumiu, o principal palco de confronto de disputa política dos ultimos dois séculos e nele foram até conseguidas conquistas importantes: desde direitos cívicos e políticos até direitos sociais, culturais e económicos muito se conseguiu consagrar nas leis fundamentais nacionais, especialmente quando embaladas por ondas revolucionárias – comparar o caso do processo constituinte do pós 25 de Abril e a transição democrática no Estado espanhol será bastante instrutivo para esta análise. Estas conquistas tiveram também cumplicidades e solidariedades além fronteiras, não sendo correcto afirmar que a escala internacional tenha estado ausente dessas disputas políticas. Mas a escala nacional era o ponto de partida e a principal base de soberania popular. Ainda será assim? Há sinais de mudança. Por exemplo, e olhando as mobilizações dos últimos anos, pela forma como a afirmação de um “nós” global – mesmo que expresso num vago “99%” - contra as elites financeiras veio dar um novo gás, e um novo sentido, às mobilizações em torno do Mediterrâneo. Ou ainda, se relembrarmos como a escala ibérica, de tonalidade europeia, foi um elemento crucial para o sucesso da Greve Geral de Novembro de 2012, que inicialmente foi convocada pela CGTP com o lema “Por um Portugal com Futuro”. É que, cada vez mais, vai-se percebendo que “isto está tudo está ligado”, que estamos extremamente interdependentes. Aquilo que nos afecta, afecta também outros povos no sul da Europa e a troika que nos oprime, oprime outros tantos povos. Mesmo que as principais ferramentas institucionais que podem fazer valer os nossos interesses (por exemplo, a constituição) estejam localizadas à escala nacional, talvez não resida aí a força e a imaginação política (usando os termos de Benedict Anderson), necessárias à uma transformação social que supere esta crise.
O crescimento e a ecologia
A emergência da resposta à(s) crise(s) ecológica(s) é talvez, o sinal mais óbvio do esgotamento das respostas soberanistas. No caso português, também porque a soberania alimentar foi aquela que primeiro perdemos com o processo de integração europeia. Não quero com isto dizer que os temas produção e distribuição alimentar não devam constituir área de reflexão e bandeira da esquerda. Pelo contrário: mais que nunca, a luta pela soberania alimentar é um elemento crucial da luta emancipatória. O problema é que esse é um elemento material vital que limita as possibilidades de saída à escala nacional. Mais ainda, coloca desafios importantes a uma imaginação intelectual sobre as alternativas. É verdade que a austeridade é desastrosa, especialmente do ponto de vista social, mas o crescimento económico não é a alternativa, sendo essencial colocar no centro de debate uma questão: os recursos naturais não são ilimitados.
O trabalho e a vida
Claro que é necessário criar emprego, de qualidade. Claro que é. Mas a nossa vida não se resume ao trabalho [e será que este tem de ser obrigação?] nem tão pouco residem aí todos os mecanismos de expropriação capitalista. Como argumenta David Harvey, as dinâmicas da exploração de classe não estão confinadas ao local de trabalho. Na verdade, o valor criado na produção pode ser recapturado para classe capitalista pelos senhorios através da cobrança de rendas altas na habitação. Basta lembrar as razões da bolha imobiliária que fez rebentar a crise financeira de 2008 para perceber como esta lógica foi explorada pelo Capital. O problema é que de tanto querer afirmar a centralidade do trabalho, fomos deixando tudo o resto – em especial a habitação - cada vez mais entregue à retórica de consumo. E corremos o risco de cair na ratoeira da compulsão ao trabalho. Mas há forma de abordar conjuntamente lutas que aparentemente estão desligadas: aqui está um bom exemplo. Mas é preciso ir mais longe. Aprendi aqui que vivemos não apenas uma agudização do conflito capital-trabalho, mas igualmente do conflito capital-vida, no qual os riscos dos mercados são socializados ao mesmo tempo que os bens comuns (saúde, educação, água...) necessários a uma vida digna estão a ser privatizados. Não será por isso que, em tempos de crise, retóricas liberais e conservadoras tendem a aliar-se? Quando se precariza as condições de vida e diminui-se as possibilidades de uma vida digna, é o próprio conceito de vida que é alvo de disputa ideológica. E é claro que não devemos abrir mão dessa disputa.
A resistência e a transformação
O post já vai longo por isso resumo esta ideia num repto: queremos apenas resistir à austeridade ou também queremos transformar o mundo em que vivemos. Em qualquer dos casos, mas especialmente na segunda opção, o processo de "convergência de vontades" não se pode resumir a encontrar um denominador comum - que em muitos casos implica a exclusão de algumas dessas vontades - mas reconhecer que todos os contributos em debate ou em disputa (mas não necessariamente em competição), são importantes para a afirmação de alternativas. Como é que isso se faz? Não sei bem, mas suspeito que a velha dialéctica marxista pode ser uma ferramenta útil.
Algum tempo atrás foi aqui lançado um manifesto para desunir a esquerda. Manifesto provocador, é verdade, mas no qual me revi pois apontava para uma questão chave: na urgência de enfrentar o governo e a troika, não podemos esperar que a afirmação de alternativas à esquerda seja conseguida fazendo tábua-rasa da diversidade de reivindicações e de identidades da dita cuja (usando os termos então adoptados). No aplanar dessas diferenças está a nossa fraqueza, não a nossa força. A união, enquanto “concórdia de vontades” tão heterogéneas, e num contexto tão complexo como o actual, dificilmente se consegue em menos de meia dúzia de meses. Basta pensar na experiência do “Começar de Novo”, que esteve na base da criação do Bloco de Esquerda (e cuja a morte foi já declarada milhentas vezes) e nas dificuldades de um percurso colectivo de cerca de 15 anos, para perceber o complicadito que isto tudo é. É que às vezes tanta unidade até cansa!
Subjacente a este debate da união das esquerdas há um conjunto de contradições que atravessa a política partidária (e imagino eu, que não sejam exclusivas do Bloco) e os movimentos sociais. São algumas dessas contradições que gostaria de apontar pois me parecem cruciais para entender os limites e as possibilidades de construção de alternativas à esquerda. Distingo sete contradições: o individual e o colectivo; a política e a emancipação; a política e o social; o nacional e o internacional; o crescimento e a ecologia; o trabalho e a vida; a resistência e a transformação. Abordarei as três primeiras agora e as restantes num próximo post.
O individual e o colectivo
Há muito que a acção colectiva não andava tão na moda. Os protestos dos últimos anos trouxeram um novo alento num mundo onde o invidualismo impõe o isolamento. No entanto, e curiosamente, com ela afirmou-se também a desconfiança em relação às organizações, em particular as tradicionais, nomeadamente partidos e sindicatos (mas não só). Desde as acampadas até aos congressos das alternativas (e ninguém dirá que se trata de uma mesma cultura política), viu-se a afirmação fabulosa de que “aqui não há organizações, só pessoas, individualmente”. Alguém acredita nisso? Alguém acredita que a capacidade de participação e o peso político de cada pessoa está imaculado das relações sociais em que se insere? Não nos iludamos: no contexto da disputa política, actores fracos dependem muito mais da sua capacidade organizativa para fazer valer os seus interesses e têm muitas mais difuldades de acesso a recursos cruciais para os resultados dessas disputas, como é o caso dos meios de informação e media.
A política e a emancipação
Esta contradição tem-se cruzado com um tema crítico no debate marxista, que pode ser resumido na velha máxima: o desenvolvimento de cada um[a] é a condição para o livre desenvolvimento de todos [ou de todas as pessoas, digo eu]. Se as correntes comunistas têm colocado a tónica da condição de emancipação no colectivo, as social-democratas colocaram no individual. As contradições abarcam desde as concepções totalitárias do Estado nas experiências de socialismo real até à capitulação da social-democracia numa espécie de “social-liberalismo”. Por outro lado, resumir a ideia emancipação à igualdade formal e à institucionalização de direitos pode ter sido eficaz na época dourada do capitalismo mas coloca hoje a esquerda na defensiva face ao resgate das estruturas institucionais pela chantagem do défice. Isso significa que devemos deitar fora o potencial progressista do processo de institucionalização de direitos verificada no pós-guerra? Claro que não. Mas não substimemos o impacto cultural que teve o neoliberalismo. É nesta linha que as recentes mobilizações têm um potencial assinalável – o ressurgimento da onda libertária é indicador disso mesmo.
A política e o social
“O que interessa é a política, não podemos andar por aí a fazer caridade.” Confesso que cansei-me dessa. Reformulo a questão levantada anteriormente: alguém acredita que a capacidade de participação e o peso político de cada pessoa está desligada das suas condições materiais e culturais de participação? A questão não se coloca apenas em termos de princípios democráticos, mas também em termos de resultados: alguém acredita que uma força alternativa que não envolva os sectores mais afectados pela austeridade tenha realmente a capacidade de mudar as relações de poder dominantes e ter um papel realmente transformador? A incapacidade de reconhecer, à esquerda, a importância deste problema é uma das razões pelas quais a extrema direita e os movimentos de cariz conservador (por exemplo, a igreja católica ou até mesmo as IURD's e afins) e populista têm encontrado espaço aberto para disputar o apoio de sectores populares. Não basta condenar a ascensão dos neofascismos. Antes disso é necessário responder ao caldo social e político que os alimenta. E entenda-se: voluntarismo humanista por si só, sem trabalho de conciência crítica emancipatória, não é solidariedade, é paternalismo caridoso; política sem atender à dimensão humana dos tempos que se vive é abstração pura e facilmente se enrederá no tacticismo.
(continua)
Se dormirem na rua...
Assim é na Hungria desde 2010. Face à oposição do Tribunal Constitucional - esse grupo de activistas radicais -, e apesar dos protestos, o governo húngaro alterou a lei fundamental autorizando as autarquias a punir quem tenha a sua "residência habitual em espaços públicos", o eufemismo usado para designar quem não tem tecto. Às multas e à pena de prisão há sempre a alternativa dos trabalhos forçados, talvez com função pedagógica, quem sabe.
De 13 a 15 de Fevereiro, estão previstas acções de luta e de solidariedade em Essen, Viena, Lisboa, Dublin, Paris, Nova Iorque, Bruxelas, Londres, Estrasbrugo. Em Lisboa, dia 13 (quinta-feira), pelas 16h30, haverá uma concentração em frente à Embaixada da Hungria.