Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


Sobre a Horda e outras coisas

por macacoi, em 27.10.13

Outubro 2013

 

 

Vou botar aqui o paleio que fui mandar no congresso do tio Marx:

 

O momento que vivemos justifica e exige o revisitar do pensamento de Marx, talvez já não para comentar os sucessos ou fracassos das suas interpretações políticas passadas mas para equacionar as possibilidades de interpretação que o seu pensamento abre, que ficaram por interpretar e por aplicar. Quando em 2008 se realizou o 1º Congresso Internacional Karl Marx comentei que poderíamos estar num momento de viragem em termos político-económicos e ideológicos; hoje em 2013 podemos constatar que essa viragem está cada vez mais próxima mas também que, inevitavelmente a dissolução do modelo capitalista, que implicou a rápida deterioração do frágil e talvez falso modelo europeu de comunidade, arrastará milhões para a miséria antes de poder dar lugar a uma proposta alternativa.

 

Em 1954, o filósofo Jean François Lyotard (em A Fenomenologia) escrevia: “o marxismo é um materialismo. Admite que a matéria constitui a única realidade e que a consciência é uma forma material particular. Este materialismo é dialéctico: a matéria desenvolve-se segundo um movimento, cujo motor está na supressão, na conservação e na superação da etapa anterior pela etapa seguinte; a consciência é uma dessas etapas. ” A perspectiva que me interessa apresentar centra-se no problema da consciência de classe como principal motor da história na medida em que só quando uma classe se reconhece nas suas dificuldades, nos seus membros, na sua cultura, e compreende o seu lugar, empreendendo movimentos de emancipação e estratégias de luta, só nessa situação cria o sentido da própria história e cria a mudança necessária. Na falta, desta como se tem visto em exemplos do passado, as pessoas só se unem num primeiro momento quando o inimigo é comum e está bem identificado, situação que não ocorre no momento presente em que a população está fragmentada nos seus interesses e nas suas formas de alienação; e que o poder, o inimigo é difuso e sem imagem embora se manifeste de forma indirecta como tentacular e bem organizado.

Usando o termo deleuziano de linhas de fuga (Mil Planaltos 1980), considero que é precisamente neste momento que é essencial haver lugar/criar espaço para a formação/regeneração de uma consciência de classe, uma nova ideia de comunidade que constitua um conjunto de linhas de fuga, de estratégias de luta.

 

O termo ou o problema não é novo, por exemplo Giorgio Agamben (A comunidade que vem 1990) comenta o seguinte: “(…) deveriamos dizer que já não existem hoje classes sociais, mas apenas uma pequena burguesia planetária, em que as velhas classes se dissolveram(…)”. Embora não concorde com a apreciação de Agamben reconheço que a propaganda capitalista se imiscuiu na cultura e nos modos de vida gerando uma destruição global da identidade social, uma homogeneização que aplana o horizonte de sentido a uma passividade, a um niilismo patente nos cidadãos europeus. A lógica capitalista anula diferenças de dialecto, de modos de vida, de vestuário, da arte, originando uma falta de sentido da existência individual (expressão de Agamben)

 

Embora este fenómeno tivesse sido previsto com décadas de antecedência, no final dos anos 80 com a disseminação da globalização, e por arrastamento, com a desindustrialização, pela qual muitos países passaram os seus sectores produtivos para o 3º mundo, eliminado despesas com direitos de trabalho, legislação ambiental; e abrindo espaço para um tipo de economia de casino (uma financeirização da economia) mais rentável em menos tempo, o desemprego chega finalmente em pleno.

A culpa não é, obviamente, do progresso tecnológico que reduz a necessidade dos postos de trabalho pela substituição da mão-de-obra por robots, mas antes porque os Estados não acompanharam essa mudança legislando de forma a permitir a conversão dos trabalhadores para outras actividades de interesse social, porque não reduziram os horários de trabalho e permitiram aos empregadores fazer exactamente o oposto: aumentar o tempo de trabalho e explorar mais os trabalhadores usando a chantagem da redução da procura de postos de trabalho deteriorando as condições laborais, salários, horários, tipos de vínculo, etc. Chegámos ao ponto de haver exércitos de desempregados que já tiveram ofícios, um papel na sociedade e que agora se veem na situação de serem descartados, anulados, na hipótese de nunca mais terem nenhum tipo de trabalho.

Em França, por exemplo, em Agosto de 1968, Pierre Charles-Pathé escreve para o L´Événement: “(…) torna-se cada vez mais difícil renovar conhecimentos e ideias, cuja maior parte caduca em dez ou quinze anos. (…) A educação permanente até à velhice devia tornar-se uma regra, e não limitar-se às técnicas.” E Daniel Cohn-Bendit em entrevista com Jean-Paul Sartre na Sorbonne, no mesmo ano, reitera esta ideia: “Mas podemos imaginar um outro sistema no qual todos trabalham nas tarefas de produção - reduzidas ao mínimo graças aos progressos técnicos - e em que cada um tem a possibilidade de prosseguir, paralelamente, estudos contínuos.” Porém,  a formação, isto é, uma revolução cultural que teria sido necessária, não existiu nem acompanhou a desindustrialização. As pessoas por seu lado também não se uniram gerando a força necessária para promover de forma autónoma essa mudança das formas de vida e de avaliação do valor das actividades consideradas como não-lucrativas pelo sistema capitalista mas que são de feição humana e absolutamente indispensáveis para a manutenção da dignidade das populações agora em desespero.

 

 O cidadão moderno foi transformado no consumidor e é avaliado apenas mediante a sua relação com o trabalho e com o consumo que este permite fazer. Os cidadãos encontram-se isolados na alienação do consumo, presos nas suas dívidas, nos seus processos capitalistas de individuação niilista em que só se conseguem sentir momentaneamente felizes consumindo. Todo este processo de subjectivação, de construção da identidade social, quer seja individual, familiar e de classe, deve sofrer uma transformação. Neste momento é forçada na medida em que estas pessoas não podem já realizar-se no consumo, e isso pode não ser um terror mas uma oportunidade para a proposta de reconversão social, cultural e política para uma sociedade mais humana e menos alienada, uma sociedade talvez comunista, não ditatorial mas sempre revolucionária.

Sendo a classe definida segundo Marx pela situação nas relações objectivas de produção, ou seja, a infra estrutura, e tendo estas condições mudado consideravelmente nas últimas décadas, também a nova comunidade deve mudar as suas formas de combate. Neste momento vive-se um momento de terror económico na Europa, semelhante a uma guerra embora sem o aparato bélico. Combate-se um exército invisível que jaz atrás do Estado, que manipula os Governos e mata sem armas pela fome e pela alienação. O Estado começa a cessar o cumprimento do chamado “pacto social” que implicava uma certa assistência paternalista aos pobres para permitir que os ricos relaxassem nos seus lares; ora, uma vez que uma parte do pacto foi rasgada o que impede a maioria de se unir e provocar o derrube dos Governos decadentes? Julien Fangeaux escrevia em 68 na mesma publicação: “Nós não temos medo da revolta. A revolta nasce directamente da exploração. Da revolta, quando se organiza e se unifica, nasce a verdadeira luta de classe, uma luta revolucionária”.

Será possível que estejamos num ponto de viragem em que as populações se possam constituir como a temível Horda para os poderes instituídos? Ouvem-se os governantes dizer que “o que é preciso é que o poder não caia na rua!” E dizem-no com terror. Esse terror, a meu ver, é uma oportunidade excelente, esse terror e “a horda” são um mecanismo possível para permitir um abalo nas estruturas de poder instituídas, é pois preciso que o poder caia na rua.

Merleau-Ponty (Humanismo e Terror 1946) considerava que “recusar um sentido à história é, igualmente, recusar a sua verdade e a sua responsabilidade na política, é dar a entender que o Resistente não tem mais razão de matar do que o Colaboracionista. É necessário dizer que certa violência é mais justificada que outra.” Parece-me o momento exige uma violência justificada mas não indiferenciada. O risco dos movimentos espontâneos é o de serem decepados precocemente pois podem encontrar-se sem rumo uma vez que muitos se reclamam de apartidarismo, de serem apolíticos. A meu ver não há tal coisa como a ausência de política, a partir do momento que se é cidadão em pleno inaugura-se uma existência política, esta é a essência de qualquer viver comunitário, por isso a horda tem de ser uma horda politizada para que as linhas de fuga tenham sentido. Segundo Lyotard, “O sentido de uma situação é o sentido que os homens atribuem a si mesmos e aos outros, numa fatia de duração chamada presente”, ora o que este presente exige é união, consciência e violência.

Este não é um apelo irresponsável à violência e à guerra civil, mas parece que nenhuma mudança significativa no tecido social foi feita com base nas mudanças estruturais internas e progressivas que afastem os meios violentos. As democracias modernas parecem ter sido desenvolvidas neste esquema de progressividade reformadora e foram tolhidas pela decadência e pela corrupção. Por outro lado, também há no passado lições suficientes para se vislumbrar como a violência em épocas de crise grave gerou sistemas políticos de tipo ditatorial que são de evitar, assim, embora considere a violência essencial como alavanca de mudança não o é como instrumento político posterior.

Os cidadãos devem pois reclamar a tão mencionada soberania perdida, nas palavras de Merleau-Ponty - “Na democracia, todos os homens devem ser soberanos, isto é, devem poder decidir o que fazem, não sós, cada um em seu canto, mas em conjunto.”, nesse momento cada um pode constituir-se numa comunidade, cada um pode ser a horda que tanto aterroriza e afronta o poder instituído. É próprio da atitude de Marx considerar que ser representado é “(…) qualquer coisa de mesquinho; só aquilo que é material, sem espiritualidade, heterónomo, inseguro, tem necessidade de representação.” (Marx por Bedeschi 29), a sociedade, talvez utópica que Marx tinha em vista, torna-se uma necessidade moderna, uma comunidade coesa, unida, sem desequilíbrios de status, a ideia da polis como boa ética que é separada/anulada pela sociedade burguesa.

 

Agamben propõe que “os homens em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma agora imprópria e insensata da individualidade, conseguissem aderir a esta impropriedade como tal e fazer do seu ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta, se os homens pudessem não ser-assim, não terem esta ou aquela identidade biográfica particular, mas serem apenas o assim, a sua exterioridade singular e o seu rosto, então a humanidade acederia pela primeira vez a uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, a uma comunicação que não conheceria já o incomunicável. (Agamben 52)“.

A partir do momento em que nos conseguimos furtar aos modos de identificação padronizados da cultura de massas capitalista, da propaganda e da alienação será possível formar uma comunidade de homens e mulheres livres mas, para isso é necessário operar a mencionada revolução na cultura, é necessário organizar as pessoas, informá-las, é necessário talvez retomar as sessões de dinamização cultural para que o movimento da horda, livre e consciente, seja eficaz e abale violentamente as estruturas já podres do sistema de produção vigente.

Esta ideia de uma singularidade ou de uma subjectividade sem representação, sem modelo, está também patente em Gilles Deleuze, que usa igualmente o conceito de singularidade e a este, acrescenta-lhe o de personagem conceptual que poderá ajudar a pensar o revolucionário. Este personagem é o nómada, aquele que salta as barreiras, aquele que traça as linhas de fuga, as estratégias para desterritorializar, para desmontar uma forma de poder e de significante único, o capital, o fetiche do poder. Porém este nómada, este homem que faz parte de uma nova comunidade não pode ser uma nova elite separada, não pode ser o estudante, nem o político profissional, deve ser o cidadão, o trabalhador que no modelo de formação e portanto de reconstrução permanente se torna autónomo e por isso livre.

Este percurso parece vislumbrar-se cada vez melhor, a dificuldade é perceber em que ponto dessa trajectória estamos, se apenas no início, se perto do momento de viragem;                  acima de tudo é essencial agir!

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 12:59




calendário

Maio 2015

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31



Arquivo

  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2014
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2013
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D